Publicado por: Evaldo Oliveira | Abril 1, 2023

LILICA, O DESFECHO

Lilica pertence a uma família importante (Monomorium pharaonis), mas adora ser chamada de formiga-do-açúcar. Mede dois milímetros, tem cor amarelada e o corpo transparente. Guarda a mágoa de ter sido expulsa dos hospitais, seu habitat preferido. Lilica também é conhecida como formiga faraó

– Parte I– Lilica e sua turma se embriagaram ao invadir minha cozinha para sugar o açúcar que se formara sobre a bancada, após o uso do álcool em gel. E logo estavam todas embriagadas. Em Lilica, Uma Devassa.E explodiram nas redes sociais. 

– Parte II– Ouvi vozes fininhas, em si sustenido, vindas da cozinha. Lilica e seu grupo exigiam respeito. Estavam sob o efeito do álcool a 70% borrifado sobre a bancada. Embriagadas, saíram cantando em grupo e sumiram por trás de alguns utensílios dispostos sobre a bancada da cozinha. Lilica, o Retorno.

– Parte II– Lilica e seu grupo passam por um processo de corrupção interna, face ao grande volume de dinheiro (K5 – cada unidade equivale a cinco porções de comida) gerado pela monetarização de suas mídias sociais. Houve dispersão dos componentes, com formação de grupos menores. Lilica, O Anel de Giges Atrapalhou

– Parte IV – Com o uso de uma solução diluída de água sanitária na bancada, Lilica e seu grupo se armaram com placas e faixas para protestar, entoando cânticos de revolta. Lilica, Impasse ou Armistício.

– Parte V – Depois de algum tempo ausente, três formigas do grupo da Lilica surgiram, montados em Ubermosq (mosquitos para transporte de passageiros de pequeno peso, como as formigas-faraó), para protestar contra a reiterada utilização da solução diluída de água sanitária sobre a bancada da cozinha. Exigiam a urgente suspensão do uso da solução, sob pena de invasão em massa, com milhares de elementos atacando ao mesmo tempo, durante a madrugada. Percebi que usavam máscara com filtragem especial para gases e eflúvios químicos. Lilica, Confronto e Ameaça

– Parte VI – Vários elementos do grupo da Lilica foram vistos em uma pequena mesa, consumindo porções de açúcar, um pouco eufóricas devido ao álcool usado para a limpeza. Uma delas falou que jamais retornariam à minha cozinha, mas a presença do Comandante Guns lidando com pequenos grupos não me deixou tranquilo. Lilica, o Reencontro.

– Parte VII – Dois meses depois, em uma noite fria, por volta das onze horas, gritos de guerra foram ouvidos na cozinha, e pequenas explosões ribombavam nas caçarolas, o que amplificava o ruído. Batalhões de formigas-faraó invadiam a bancada. A Cerca de vinte de altura, esquadrilhas de ubermosq voavam sobre os batalhões de soldados, atirando bombas luminosas feitas a partir de um concentrado extraído de vagalumes logo após a morte, produzindo um efeito pirotécnico especial. Na frente, montada em um ubermosq, Lilica gritava palavras de guerra, e me convocou para discutirmos formas de convivência mútua, sob pena de ataques diretos às pessoas durante a madrugada, com sérios prejuízos para os injustos (nós). Lilica deixou claro sua disposição para um desfecho, uma solução para o imbróglio.

A questão era: ou vocês permitem nossa presença na bancada da cozinha, sem que seja limpa, para que possamos utilizar as guloseimas ali acumuladas, ou nossos grupos atacarão os moradores durante a madrugada, montados em ubermosq, sem deixar as pessoas dormirem, ameaçando entrar na boca, no nariz e no ouvido, além das bombas incendiárias, uma nova versão das bombas luminosas.

Ao final, a condição foi aceita, e a paz foi finalmente selada. O armistício foi celebrado com um pouco de espumante jogado sobre a bancada, e uma taça para mim. Porém elas esperaram que eu tomasse a bebida primeiro, deram um tempo e atacaram o que eu havia jogado na bancada. Somente pela madrugada retornaram para casa, quase trôpegas, pelo efeito do espumante. Os ubermosq não beberam.

Lilica, liberdade ou guerra. 

EvaldOOliveira

Sócio Correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do RN

Publicado por: Evaldo Oliveira | Março 25, 2023

AS PRIMEIRAS PRÁTICAS DE HIGIENE E CUIDADOS MÉDICOS

Diz-se que a verbena foi usada para conter o fluxo de sangue das feridas de Cristo em sua crucificação. Poderia ter sido mais útil quando a coroa de espinhos foi colocada sobre sua cabeça.

Em meio a práticas bizarras, uma poção para tratar epilepsia, catalepsia e problemas estomacais, supostamente inventada por São Paulo, contém uma lista extensa de ingredientes: alcaçuz, sálvia, salgueiro, rosas, funcho, canela, gengibre, cravo-da-índia, sangue de corvo-marinho, mandrágora, sangue de dragão e três tipos de pimenta. Apesar da ação curativa de várias plantas (alcaçuz ainda é usado para tratar a tosse e a bronquite e a sálvia melhora o fluxo sanguíneo para o cérebro, e o salgueiro contém ácido salicílico), é duvidoso que a poção tivesse sido de qualquer utilidade no tratamento da epilepsia e da catalepsia. Sangue de dragão era uma cura feita com a resina vermelha brilhante da árvore Dracaena draco (“sangue de dragão”).

Bem antes de Cristo, os cuidados médicos existiam na Grécia, onde trabalhava o pai da Medicina, Hipócrates, e em Pérgamo, atual Turquia, onde foi construído um hospital. 

Os cuidados médicos e de higiene nas batalhas retratavam o nível do atendimento das enfermeiras e dos médicos em cada época. Vegetius, autor romano, escreveu que o Exército Romano deveria ser “preservado” fornecendo um bom suprimento de água limpa, levando em conta o uso da medicina e o exercício para as tropas, e que a água potável era um imperativo em todos os momentos.

Os soldados romanos feridos recebiam tratamento inicial por médicos que carregavam caixas de curativos. Sob os auspícios do general romano e estadista Gaius Marios, o Exército Romano tornou-se a força mais bem treinada e disciplinada que o mundo conhecido já testemunhou, e seus serviços médicos militares tornaram-se a inveja de todos os exércitos opostos. O cuidado dado a um soldado romano era, de fato, quase equivalente ao recebido por um soldado na Primeira Guerra Mundial.

Com o apoio da Igreja Católica, a primeira Cruzada deu início uma série de guerras religiosas, no período medieval. O objetivo era recuperar a Terra Santa do domínio islâmico. A primeira Cruzada foi organizada pelo papa Urbano II em 1096. Os exércitos cruzados e as forças bizantinas foram à Terra Santa e conquistaram inúmeros locais que estavam sob o controle dos turcos: Antioquia, Niceia.

As forças Cruzadas eram acompanhadas por muitos artesãos (ferreiros e armadores, caçadores para cuidar dos falcões e cães dos cavaleiros), mas pouquíssima provisão para higiene pessoal e assistência médica. O descaso dos Cruzados com a higiene pessoal foi considerado uma afronta à sensibilidade árabe na Terra Santa, e pode ter contribuído para que um grande número deles morresse na praga após o cerco de Antioquia por oito meses, em 1098.

Há evidências suficientes para inferir que na Idade Média a maioria das pessoas se lavava pelo menos uma vez por semana. Os pobre se banhavam em riachos, rios e lagos; os membros mais abastados da sociedade se reuniam em banhos, que se tornariam verdadeiros bordéis, sendo desaprovados pela Igreja Católica.

No século XVI Ambroise Paré decidiu seguir a carreira de médico ao testemunhar soldados franceses matando seus camaradas feridos com um golpe de misericórdia, na Batalha de Milão, em 1536. Usava-se derramar óleo fervente sobre feridas abertas, prática muito dolorosa. Paré combinou uma tintura feita de gema de ovo, terebentina e óleo de rosas, e na manhã seguinte ficou surpreso ao ver que todos os soldados que haviam sido tratados com sua tintura estavam bem melhores do que aqueles que haviam sido submetidos ao tratamento com óleo fervente.

Com o passar dos séculos, as considerações de higiene pessoal se deterioraram a tal ponto que, no século XVII, os banhos foram desaprovados. As pessoas fediam muito e isto permaneceu até o advento da Revolução Industrial, em meados do século XVIII, e a descoberta da teoria de germes e doenças na segunda metade do século XIX. A higiene  e o saneamento, até então, não eram universalmente aceitos como as razões por trás de algumas doenças e enfermidades como o cólera e a febre tifoide. 

No século XVI, a Rainha Isabel, que só tomou banho duas vezes na sua vida, mandou destruir as casas de banho em toda a Espanha. Era casada com o Rei Fernando II de Aragão, e consideravam um desrespeito a Deus tomar banho em casa.

EvaldOOliveira

Sócio Correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do RN

Dados baseados no livro Médicos do Campo de Batalha, de Martin King

Publicado por: Evaldo Oliveira | Março 18, 2023

CONVERSA DE VELHOS AMIGOS

Há sessenta anos em Natal, Remiela já esquecera quase tudo que se relacionava ao Oriente Médio, onde nascera, e tema obrigatório de suas conversas. Ao completar 75 anos, foi preparada uma festa em família. Filhos e netos já estavam preocupados com as falhas de memória do mais brasileiro de todos os árabes. Nada melhor do que convidar um amigo árabe, ex-colega de faculdade, para reviver acontecimentos do passado. Uma varrida no tempo. Mas não lembravam o nome.

Organizado o evento, contratado o buffet, compradas as bebidas e a certeza de haverem convidado todos os familiares, conseguiram o nome do velho amigo do aniversariante: Aisenma. Este era o nome do ex-colega de faculdade, com quem Remiela não falava há alguns anos. Convite feito. Tudo confirmado. 

A festa, na casa da família, na praia de Pirangi, começou cedo, com um café maravilhoso, seguido de um banho de mar, em que  nadaram juntas cerca de cinquenta pessoas, entre familiares e amigos. Muita gritaria, muita animação, e todas as honras ao aniversariante.

No alpendre da casa, em um canto, uma mesa com duas cadeiras. E lá ficaram Aisenma e o ilustre aniversariante. Os dois foram colocados em um local mais distante, para que velhos segredos pudessem ser relembrados sem constrangimento. Logo entabularam uma conversa animada, onde as risadas se sucediam. Era um riso franco, em bom tom, sem compromisso com o ridículo. Os familiares, em especial os filhos, um pouco afastados, sentiam-se recompensados pela ideia de trazer o velho amigo do pai para aquele dia de comemorações. E os dois almoçaram juntos, ao tempo em que se sucediam gostosas e demoradas gargalhadas.

Mais tarde, os familiares em estado de plena euforia pela aparente satisfação de Remiela em ter rememorado antigas estórias, coisas do passado, farras da juventude e, até, quem sabe, segredos de antigos amores, os filhos foram abraçá-lo.

– E aí, papai, o papo foi bom?

– Que papo? – Perguntou com ar de espanto.

– O papo com seu amigo.

– Por falar em amigo, quem era aquele senhor que estava em minha mesa durante todo o almoço? 

No avião, de volta ao Rio, olhando o cartão de embarque, Aisenma esbravejou: Que diabos eu fui fazer em Natal, se lá não conheço uma pessoa sequer?

EvaldOOliveira

Sócio Correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do RN

Já publicado neste blog com outro título e outra formatação

Publicado por: Evaldo Oliveira | Março 11, 2023

DESLUMBRAMENTO NA TURQUIA

A visão da muralha de Constantinopla, ainda em excelente estado, nos causa arrepios na alma e uma satisfação quase êxtase. Muitas emoções se juntaram, levando-me a um estado de encantamento e deslumbramento, quando pus os olhos em pontos que que fizeram parte de nossos insipientes estudos da História Universal. 

Quem visita a Turquia não pode esquecer que esse maravilhoso país guarda muitos séculos de história. No período de 1525 a 1200 a.C. foram dominados pelos Hititas, para serem subjugados, em seguida, pelos assírios. Alexandre Magno conquistou essa região, tomada em seguida pelo Reino de Pérgamo e pelos Jônios, que eram gregos que fugiam de invasões na Grécia. O último rei de Pérgamo, ao morrer, deixou esse reino para o Império Romano. A Anatólia – região peninsular onde hoje se encontra a Turquia – foi o centro de três impérios: o Hitita (há 3000 anos), o Império Bizantino (do século V até 1453) e o Império Otomano (de 1453 a 1918).

Com o fim da Primeira Guerra mundial (a Turquia se aliara à Alemanha), o Império Otomano foi  partilhado entre as potências vitoriosas, através de um tratado de 1920.  O comandante Mustafá Kemal recrutou um exército, liderou a Guerra da Independência e expulsou as tropas gregas, italianas e francesas, chegando a ameaçar os britânicos, declarando a soberania da Turquia no dia 23 de abril de 1920. Em 1922, decretou a abolição do sultanato, proclamando a república em 29 de outubro de 1923. No ano de 1924 o califado foi eliminado. A Turquia é um país muçulmano moderado, porém não é árabe.

O fundador da República, Mustafa Kemal Ataturk, é um homem venerado em todo o país, por ter transformado a Turquia em uma nação ocidentalizada e laica. As mulheres   podem se vestir à moda ocidental, e as pessoas não são obrigadas a frequentar as mesquitas. Ataturk adotou o alfabeto latino, com uma língua onde se incluem o Mongl, o Húngaro e o Finlandês, determinou o uso do calendário gregoriano (antes era o calendário árabe), o que permitiu à Turquia entrar para o rol dos países modernos, ao tempo em que deu o direito de voto às mulheres e introduziu a monogamia.

Istambul, antiga Constantinopla, é a maior cidade da Turquia, e possui hoje 14 milhões de habitantes. Seu território está dividido entre a Europa e a Ásia, regiões separadas pelo estreito de Bósforo. É, portanto, a única cidade do mundo a ficar em dois continentes. A ponte que separa as duas partes de Istambul – Ponte do Bósforo – tem 1.074 metros de vão livre. É simplesmente impressionante. 

Viajei pelo interior da Turquia, andei de balão na Capadócia, escutei os chamados para a primeira prece do dia, nas mesquitas, emitidos em árabe, com leitura de trechos do Alcorão, que ecoam pelas cidades turcas antes do nascer do sol. Porém a Anatólia central, distante 105 km de Konya e a 150 km de Ancara, nos emociona e intriga. No caminho, vislumbramos a silhueta de um imenso lago, com área de 1500 quilômetros quadrados. Ao pararmos, descobrimos tratar-se do Lago Tuz (em turco: Tuz Golu – lago de sal), o terceiro maior lago salgado do mundo. Um lago sem saída, em que no verão evapora-se quase toda sua água, formando uma capa de sal com uma espessura média de 30 cm. No inverno, parte do sal volta a dissolver-se na água que entra. Na lagoa são produzidos 70% do sal consumido no país, gerando uma grande atividade industrial na região.

Como em um filme, Areia Branca surgiu inteira em minha mente, com suas salinas, a alegria de seus maçaricos e o malabarismo acrobático de suas garças. imaginei antigos cataventos movendo água para os baldes das salinas de minha infância, montanhas de sal à distância. 

Ah, também não há camelos na Turquia. Os poucos que vi, em alguns pontos turísticos, pareciam tão ridículos quanto aqueles da praia de Genipabu, em Natal.

EvaldOOliveira

Sócio Correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do RN

Publicado por: Evaldo Oliveira | Março 4, 2023

MANHÃ AGITADA NO MERCADO PÚBLICO

Fui destacado para ir ao Mercado Público comprar umas tapiocas para o café. Criança de seis anos, coloquei os mil réis no bolso da calça, ajeitei o suspensório que teimava em cair do ombro e saí aos saltos, feito cabrito em busca de oró. Passando pelo oitão da prefeitura, vislumbrei, ao longe, algumas panelas de alumínio, pesadas e grosseiras, umas grelhas, frutas e utensílios espalhados pelo chão. Tudo para vender, claro.

Em um canto da rua, um aglomerado de pessoas formando um círculo, e no centro um homem falava em um microfone rudimentar pendurado no pescoço, a saliva se espalhando em borrifadas de tufão. Era um homem magro, que gritava, gesticulava. De repente parou, pôs a mão no pescoço de uma velhinha com rosto de sofrimento, língua saburrosa, branca feito barriga de lesma, que se escondia solitária em uma boca desdentada, que assistia ao espetáculo, e berrou:

– Esta é a Rádio Papa-Figo Pé de Calçada, operando em ondas curtas, médias e esticadas de um poste para o outro, transmitindo com quinhentos e cinquenta quilos de lixo na antena!

O sujeito rodopiou, voltou a mão para o pescoço da senhora e bradou:

– Vocês estão vendo essa desgraça de gente? Magra, desnutrida, com cara de bruxa, feia que só a peste? Mas eu lhes garanto: se ela tomar ao menos três vidros deste remédio, vai ficar bonita, rosada, forte, com cara de gente, como aquela moça bonita. 

Em seguida, deu um giro acrobático, fixou o olhar em mim e falou decisivo:

– Vem cá, menino. Eta, menino bonito! Fofura, fique segurando esse saquinho – e fez questão de mostrar a todos que o pano de coar café estava vazio – que daqui a pouco vai aparecer um ovo aqui dentro. Segure o saco assim, de frente ao corpo, com os braços levantados, porque hoje é dia da onça beber água! Prestem atenção, senhoras e senhores, à mágica que vou fazer: esse menino vai botar um ovo que vai aparecer no saco que ele tem nas mãos! Vocês nunca viram nada igual. Este número de magia foi-me ensinado por uns magos de Estambul, quando de uma fuga pela Turquia, na época em que eu andava em busca da fórmula do Elixir da Longa Vida. 

Sassaricou, fez um caqueado e arrematou:

– Vocês devem estar pensando que eu estou inventando, e que nem sei falar turco. Pois bem, vou ensinar algumas expressões usadas no dia a dia de uma cidade turca. Prestem atenção à pronúncia tipicamente turca desta conversa entre um homem e uma mulher: 

– O homem disse: giunaidãn =  bom dia! Nassãl-sanãz = Como está? 

– A mulher respondeu (e usava timbre feminino ao falar, hoje utilizado por Amó): teshekkiu = Estou bem, obrigada.

– (e voltou a falar grosso novamente) Memmnum oldern = Prazer em conhecê-la. 

– Novamente falando fino: Efedin? = Como?

– O homem falou: Memmum oldern = Prazer em conhecê-la.

– Mais uma vez imitando uma mulher: Ah shimdi anladãm = Ah, agora entendi.

– Ouviram? Se tiver alguém aqui que fale turco, poderemos continuar o papo o resto do dia. E podem conferir com qualquer pessoa que conheça esse belo idioma. Aprendi tudo isso em Estambul, o paraíso dos odores e dos temperos.

Descobri, logo de saída, quão mentiroso era o sujeito. Claro que aquelas expressões eram turcas. O restante foi mentira do começo ao fim. Mas confesso que fiquei preocupado, e mentalmente dei uma revisada em minhas entranhas, e desejei que o ovo fosse, ao menos, de pombo ou de codorna. De galinha, nem pensar. 

E, ali mesmo, fiquei imóvel, feito estátua viva, segurando aquele saco branquinho na frente do corpo, preocupado com o que dissera aquele homem. Eu iria botar um ovo? Será que eu ouvira direito? Face aos acontecimentos, esqueci-me completamente do que fora fazer no mercado naquela manhã. As pessoas, demonstrando uma pressa ansiosa, contavam as moedas para comprar o remédio, que era apregoado como sendo um segredo dos índios do Xingu. E eu continuava de pé, sustentando o saco em frente ao corpo. 

Depois de uma hora e meia, e a maior parte dos produtos vendida, as pessoas saíram. Apenas umas três ou quatro pessoas teimavam em esperar a conclusão da mágica, com o surgimento de um ovo dentro do saco de coar café. O vendedor de ilusões dirigiu-se a mim, pegou o saco, guardou na mala, cumprimentou as pessoas com a cabeça e se retirou sem fazer alarde, quase levitando.

Em casa, sem as tapiocas, não tive minhas justificativas aceitas pela corte marcial e, para completar o dia, ainda levei um puxão de orelha, pra deixar de ser brocoió e beradeiro.

Hoje, tenho uma quase certeza: aquela velhinha era a mãe dele.

EvaldOOliveira

Sócio Correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do RN

Texto já publicado neste blog

Publicado por: Evaldo Oliveira | Fevereiro 25, 2023

UMA CADEIRA E UM GRITO. DUAS FORMAS DE PROTESTO

Caminhando pela Praça das Nações, em Genebra, em frente à representação da ONU, de longe o turista vislumbra uma movimentação em torno de uma imensa cadeira na calçada. De perto, percebe que a cadeira tem uma altura de doze metros e tem uma das pernas quebradas (Broken Chair). 

Cadeira Quebrada é uma obra do escultor Daniel Berset. Sua perna esfacelada é um grito de protesto contra a fabricação e o uso de minas terrestres que ainda mutilam e matam milhares de pessoas pelo mundo. A Cadeira Quebrada Ergue-se a uma altura de 12 metros, pesa cinco toneladas e meia e domina a Praça das Nações, em Genebra, Suíça, desde 1997. 

Em Genebra, em local próximo à Cadeira Quebrada, fica o Museu da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho. Nesse museu estariam retratadas histórias de milhões de pessoas vitimadas por guerras e conflitos pelo mundo. Porém, antes de entrar, uma imagem nos intrigou. Juntas, do lado de fora do prédio, dez figuras humanas sem os rostos nos impunham uma reflexão. Eram figuras esculpidas em pedra, formando uma escultura (Hirto de Medo), obra do artista suíço Carl Bucher.

Broken Chair. Hirto de medo. Esculturas contra a estupidez humana

EvaldOOliveira

Sócio Correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do RN

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Publicado por: Evaldo Oliveira | Fevereiro 18, 2023

UM ROSTO ENIGMÁTICO DE MULHER

Uma viagem a São Paulo. Uma visita a um amigo. Na sala, do lado direito, em meio a outros quadros, um rosto de mulher. Fixei o olhar naquele rosto sereno, quase vivo, enigmático.

Esperei ficar sozinho. Por puro impulso, uma foto. Rápido, de forma sorrateira. Seria a mulher do meu amigo? Ali, um sentimento de culpa: Um furto, uma traição -, pensei. No meio da nossa conversa, de forma dissimulada, mais alguns olhares para aquela parede branca. O dono da casa percebeu, e se dispôs à apresentação: Esta é SileneAdoro esta foto -, falou enquanto olhava para o quadro.

Nesse momento, chegou mais um amigo. A conversa ganhou novos rumos, ou até se perdeu. Falou-me do seu trabalho como fotógrafo e das perspectivas para o futuro de seus projetos. Também se especializara em gastronomia, e planejava dedicar-se mais a esta área. Boa parte da conversa viajou por temperos, doces, bolos, e os mais diversos modos de preparação.

E eu de olho em Silene. Analisei de longe sua testa, sobrancelhas, seu mais altivo de modelo, sua boca sensual, seu queixo fino. Na foto não aparecem os cabelos, que logo imaginei forma e cor. Naquela parede, apenas um rosto misterioso e provocador.

Na saída, um aperto de mão, e mais uma olhada. A última, pensei. E logo o anfitrião, em tom de despedida, encerrou: Silene á uma cabeça de manequim que eu comprei em uma  loja de perucas especiais -, falou meu amigo com certo orgulho. Essa cabeça fez parte dos meus primeiros ensaios fotográficos, e eu a mantinha nesta sala. Mas um dia um amigo esbarrou forte em minha modelo e ela se partiu. Joguei fora a cabeça danificada -, encerrou com ar de tristeza.

Um rosto altivo, um belo nariz, um olhar enigmático. 

A foto veio comigo, escondida em meu smartphone. 

EvaldOOliveira

Sócio Correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do RN

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Publicado por: Evaldo Oliveira | Fevereiro 11, 2023

SUTILEZAS DA PRÁTICA PSIQUIÁTRICA

Dr. Everson é um psiquiatra alinhado com a modernidade de sua especialidade, e busca sempre procurar entender a mensagem por trás de uma queixa ou atitude de seus clientes. Desse modo, está sempre disposto a ouvir seus pacientes. Certo dia, estava em seu consultório, atendendo uma consulta, quando o telefone tocou. O médico fez de conta que não percebera o número no visor do telefone. Um minuto depois, novamente aquele número aparecia na telinha do aparelho. Era ele. Resolveu atender.

Era ele, mais uma vez. A terceira chamada em cinco minutos. O médico falou com voz pausada:

– Qual é o problema, seu Lázaro (nome fictício)?

– Doutor, por favor me ajude – Falava o cliente, já bastante conhecido do profissional. Sua voz denotava um tom de aflição e desespero.

– Seu Lázaro, fique calmo e me explique o que está acontecendo.

– Doutor, fui sequestrado!

– O senhor tem certeza do que está dizendo?

– Tenho, sim. Estou preso em um quarto.

– Seu Lázaro, conte o que é que tem nesse quarto em que o senhor foi colocado.

– Tem uma cama, um ventilador de teto, uma cadeira e um aparelho de televisão igual ao meu.

– Seu Lázaro, o senhor deve estar em seu quarto. Veja direito.

– É, doutor, agora percebi. Estou em meu quarto.

E desligou.

Há um mês, saindo do elevador do prédio onde tem o consultório, sentiu seu aparelho celular vibrar no bolso da calça e verificou quem era o responsável por aquela ligação.

Do outro lado um cliente implorava por um atendimento de emergência para a manhã seguinte, bem cedo, porque seu caso era muito grave. Inclusive ele não entendia como ainda estava vivo depois daquele incidente.

O médico concordou em chegar meia hora mais cedo para atender o paciente, em vista da urgência do caso.

Quando o psiquiatra chegou, meia hora antes de iniciar o expediente, o paciente já o esperava há meia hora. Estava muito aflito e angustiado.

– Seu Jaime, o que aconteceu?

– Doutor, um inseto picou bem no alto da minha cabeça. Nem sei como não morri.

Pacientes. Conflitos. Capacidade para entender as mensagens que cada paciente traz consigo.

Psiquiatria.

Evaldo Alves de Oliveira

Sócio Correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do RN

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Publicado por: Evaldo Oliveira | Fevereiro 4, 2023

O MONT BLANC VISTO DA PRAÇA: CHAMONIX

Localizada na França, situada a oitenta e oito quilômetros de Genebra/Suíça, distando  duzentos e vinte quilômetros de Lyon/França e cento e setenta e um quilômetros de Turim/Itália, Chamonix honra com louvor todo o charme contido em seu nome.

Chamonix-Mont Blanc fica exatamente aos pés do Mont Blanc. O Mont Blanc escancara e expõe toda a estonteante beleza de seus 4.808 metros de altitude. Com uma população em torno de dez mil habitantes, Chamonix pode ser, de fato, o que entendemos por cartão postal, sem forçar a expressão.

No centro da cidade, a belíssima e estonteante visão do Mont Blanc nos tira do chão com seu convite silencioso a nos desafiar. Ali, os superlativos não são exagero nem força de expressão. São apenas exclamações que escapam de todas as bocas, em todos os idiomas da Terra.   

Caminhando por uma de suas ruas do centro, um pequeno edifício desperta a nossa atenção. De sua lateral esquerda algumas pessoas se expõem, de forma perigosa, em sacadas e janelas. São figuras pintadas nas mais diversas poses, saudando e sendo saudadas pelos visitantes.

Naquela pequenina cidade com aura de tripla fronteira, bondinhos teleferizados nos conduzem ao sonho. Embaixo, um cartão postal nos encanta e seduz. 

Isto é Chamonix. 

Aqui, os superlativos se apequenam.

EvaldOOliveira

Sócio Correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do RN

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Publicado por: Evaldo Oliveira | Janeiro 28, 2023

TROIA CONSTA APENAS NO POEMA DE HOMERO

Era assim que diziam sobre histórias da Ilíada, o famoso poema de Homero sobre a Guerra de Troia. Schliemann, nascido na Alemanha, junto à fronteira com a Polônia, acreditava ser verdadeiro o poema de Homero. Com esse pensamento, deu início a escavações, quase sempre infrutíferas.

No dia 30 de maio de 1873, Schliemann descobriu um local com 10.000 objetos de ouro, que acreditava ser o tesouro de Príamo, o último rei de Troia. Conseguiu levar as taças, diademas e brincos para a Grécia, onde ficou escondido pelos familiares de sua esposa.

Ainda no ano de 1873, Schliemann sentiu que batera em algo de metal enquanto ele próprio escavava. Mandou todos os trabalhadores para suas casas, justificando que era seu aniversário. Desenterraram uma grande caixa de cobre, em cujo interior estava o ouro brilhante, que constituiria o maior achado arqueológico do século XIX.

Schliemann escavava uma cidade no alto de uma colina, que fora governada pelo rei Agamemnon, cunhado de Helena. Ali, descobriram túmulos que continham objetos funerários de ouro, incluindo máscaras fantasmagóricas. Muitas peças foram levadas para casa por sua esposa, Sophia, enroladas no vestido. 

O chamado tesouro de Príamo foi doado pelos Shliemann a um museu de Berlim. Durante o caos da Segunda Guerra Mundial, as peças foram removidas e guardadas num abrigo subterrâneo, mas em 1945 desapareceram sem deixar rastros, talvez para sempre.

Schliemann morreu em 26 de dezembro de 1890 aos 69 anos, sozinho e quase sem assistência médica, em Nápoles, quando desmaiou em praça pública. Por não dispor de dinheiro nem identificação, o hospital o rejeitou como indigente. Texto baseado no livro Os Grandes Mistérios do Passado, do Reader’s Digest.

Schliemann. Uma quase certeza. Determinação. Troia. 

EvaldOOliveira

Sócio Correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do RN

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