Visitei um amigo meu, no interior da Inglaterra, que sobrevive ganhando dinheiro servindo de elemento para testes de novos medicamentos. E está muito bem, apenas com umas manchas na pele. Há uma semana ouvi esta frase de um desconhecido, que conversava em uma fileira atrás de mim, em uma reunião. Isto me fez lembrar de Aslee, personagem do livro Como Me tornei Estúpido, de Martin Page, lançado no Brasil pela Editora Rocco.
Conta Martin: a Nenê, fábrica de produtos alimentícios, tinha por hábito testar os novos produtos, antes da sua entrada no mercado, num grupo de consumidores. Os pais de Aslee eram muito pobres e o tinham inscrito em testes para receber bônus de aquisição de alimentos.
Nesta época, a Nenê queria lançar uma nova variedade de potinhos para bebês com um complemento de vitaminas e fósforo. Em doses infinitesimais, o fósforo é bom para a saúde, mas houvera um erro de dosagem na fábrica – um engenheiro confundiu microgramas com quilogramas. Em decorrência deste equívoco industrial, não morreu nenhuma das crianças dos testes, mas as sobreviventes tiveram cânceres e outras doenças graves. Aslee teve a sorte relativa de não ter senão problemas mentais que retardaram seu desenvolvimento cerebral. Ele não tinha deficiência intelectual propriamente dita; apenas o seu espírito tomava caminhos particulares, e sua razão seguia uma lógica que ninguém compartilhava. Outra consequência daqueles pequenos potes para bebês superdosados em fósforo era que Aslee brilhava na noite. Era muito bonito. Quando perambulavam pelas ruas à noite, As – era assim que era chamado pelos amigos -, ao lado de Antoine, parecia um imenso pirilampo que iluminava o caminho pelas ruelas escuras.
Aslee passou dois anos e meio como guarda do Museu Nacional de História Natural do Jardim de Plantas de Paris. É que sua luminosidade o fazia parecer um espectro, uma aparição sobrenatural, e sua estatura imponente ajudava a amedrontar os raros ladrões que por ali apareciam.
Antoine, passeando pela primeira vez por uma galeria do museu, povoado de milhares de animais empalhados, teve sua atenção despertada por uma vaga forma estranhamente iluminada. Ele imaginou tratar-se de uma espécie de homem de Neandertal ou de um yet (conhecido como “o abominável homem das neves”) glabro a que se teriam posto trajes e calçados. O jovem baixou os olhos em busca de uma tabuleta explicativa, de uma informação científica sobre a origem e a época desse estranho espécime. Ele a procurou aos pés da criatura, mas nada encontrou. Levantou a cabeça: a criatura sorria-lhe e estendia-lhe a sua enorme mão. Foi assim que se tornaram amigos. E passaram a estar sempre juntos.
Certa vez, junto aos amigos, Antoine fez esta reflexão, criticando o intelectualismo das pessoas: “Há um provérbio chinês que diz, por alto, que um peixe nunca sabe quando urina. Isso se aplica perfeitamente aos intelectuais. O intelectual está persuadido de que é inteligente, porque se serve do seu cérebro. O pedreiro se serve das suas mãos, mas tem um cérebro que lhe pode dizer: ‘Ei! Essa parede não está reta, e, além disso, você se esqueceu de pôr cimento entre os tijolos.’ Há um vaivém entre o seu trabalho e a sua razão. O intelectual, ao trabalhar com a sua razão, não possui esse vai-e-vem, as suas mãos não se animam a dizer-lhe: ‘Ei, meu caro, você está enganado. A Terra é redonda.’ Falta ao intelectual esse retorno, razão por que ele se julga capaz de ter um parecer esclarecido a respeito de todos os assuntos. O intelectual é como um pianista que, por utilizar as mãos com virtuosidade, pensa ter aptidão para ser, naturalmente, jogador de pôquer, boxeador, neurocirurgião e pintor”.
As olhou-o com os seus grandes olhos assombrados. Apenas isso.
No Brasil, a Bioética existe para intermediar essas questões.
Realmente um texto excelente.
Como sempre aprendi mais algunha coisa que nao sabia.
Excelente.
Abracos
Dodora
By: dodora on Novembro 28, 2009
at 2:18 am
Dodora, a reflexão que Antoine nos impõe, ao trazer à baila o valor do discernimento, do até onde ir, é muito importante. Um abraço.
By: Evaldo Alves de Oliveira on Novembro 29, 2009
at 1:13 am
Caro Evaldo,
Pelo que já li, vi e vivenciei, o preconceito – ao contrário do que se pensa – não é entre os incultos que mais viceja, mas sim entre os intelectuais, principalmente para assuntos que fogem a suas respectivas áreas de conhecimento.
Por isso, gostei muito da reflexão do Antoine, na parte final do texto.
Parabéns por trazer-nos mais este presente!
Abraços
Dorini
By: Dorini on Novembro 28, 2009
at 11:52 pm
Caro Dorini, você é um leitor especial, indo direto ao que mais nos interessa. Por mais que um ilusionista manipule bem sua mão e seus dedos, ele não toca piano, e vice-versa. A autocrítica é fundamental em todos os níveis. Um abraço.
By: Evaldo Alves de Oliveira on Novembro 29, 2009
at 1:15 am