A pressa era grande. O aeroporto, a passagem, a mala, os livros. Os livros, onde estão? Prometi a Cristina Bernardo levá-los para Natal, e, de lá, até Areia Branca. São livros importantes, do MEC, a serem utilizados no treinamento de professores. Não poderia deixar de levá-los. Mas Cristina não os trouxera, e isto me afligia.
A barba, claro, tinha de fazê-la. E dei uma cabeçada na porta do armário do banheiro, e o espelho se foi. E os livros que não chegavam. De repente, já na hora de sair, um telefonema da minha amiga:
– Os livros estão com o Dr. José Fernandes, um médico de Natal. Você só terá o trabalho de procurá-lo no aeroporto e pegar o tíquete da bagagem. Tudo resolvido?
– Claro, respondi aliviado. Tudo resolvido. Já ia desligar quando me lembrei de um detalhe: não conhecia o doutor José.
– Ah, Evaldo, é simples, respondeu Cristina. O doutor José Fernandes tem cerca de 50 anos, e estará de paletó. Você não terá dificuldade em reconhecê-lo no aeroporto.
– Mas como, Cristina? Quase todos estarão de paletó, e terão no rosto aquela aura dos que viajam para casa. O homem não tem um sinal característico, particular?
Cristina fez uns segundos de silêncio e logo disparou, contundente:
– Ele tem um caroço na testa. É só olhar para a testa e procurar aquele sinal.
Na pressa da viagem, ainda me recuperando da pancada no espelho, lembrei-me das aulas de patologia, onde aprendi que um cisto resulta do arrolhamento dos ductos sebáceos, o sebo sendo substituído por queratina – forma inicial do cisto de inclusão epidérmica. Só que isso nada resolvia. O homem tinha um calombo na testa, e eu tinha que identificá-lo no aeroporto, se quisesse levar os livros para Areia Branca, cidade onde nasci e que fica quase na divisa com o Ceará, perto de Mossoró e de Tibau, esta uma praia famosa por suas areias multicoloridas.
Aí surgiu uma dúvida: seria calombo o nome vulgar do cisto? Ou seria catombo? É que eu, como médico, não podia ficar em dúvida quanto ao apelido do cisto de inclusão. Mas como eu tiraria aquela dúvida já na hora de viajar? Dicionário em casa? Há, claro.
Saí de casa apressado, já imaginando um modo simpático de tentar identificar o homem do calombo (ou catombo) no aeroporto.
A primeira dificuldade veio no check-in: não conseguia me posicionar de frente para as pessoas. Desse modo, eu não poderia identificar o meu amigo do caroço (enquanto não chegar à conclusão sobre o real nome da protuberância frontal, vou tratá-la por caroço) na testa. Esforcei-me, fiz tudo que era possível e nada. Ninguém com aquele nome, nem com o caroço, estava ali no balcão da companhia aérea. Desisti. Na sala de embarque eu o identificaria com calma.
Mas a dúvida continuava a me atormentar. Seria calombo ou catombo? Resolvi entrar na livraria para folhear um dos dicionários ali expostos, e em promoção. Preço especial. Mas estavam todos plastificados. Não dava para folheá-los. Aí resolvi comprar um Houaiss novinho, lançamento recente. Mas era muito caro. Ah, pensei empolgado, farei tudo pelo calombo (ou pelo catombo). Arrependi-me. O dicionário era muito pesado e volumoso, e isto me atrapalharia pelo resto da viagem. Na ida e na e volta. Dicionário embaixo do braço, sacola na outra mão, chego à sala de embarque. Lotada. Olho em volta, tentando identificar, de soslaio, algo que me parecia fácil. E resolvo sair em busca do médico natalense com aquela característica física.
Logo percebo a minha dificuldade. E descubro os vários tipos de sobrancelhas, de franjas, de penteados, de óculos. E descubro belas carecas, adultos com espinhas na testa, narizes de todos os formatos e quilates. Peles de todos os matizes: lisinhas, ressecadas, ásperas, com manchas, com pintas, com sinais (nevos) escuros, redondos, alongados… Mas nada de caroço. E se fosse lobinho? Lobinho é a mesma coisa que calombo? E eu com aquele super dicionário embaixo do braço, pesado, volumoso, e sem tempo de tirar essas dúvidas aparentemente tão bobas. Havia um calombo a ser identificado e isto me afligia.
Foi então que surgiu a idéia de chamar o médico pelo alto-falante. Mas como? Era difícil convocar alguém depois dos atentados de Nova York. Todos estavam assustados com aqueles acontecimentos e eu não me atreveria a convocar alguém daquele modo. Opção cancelada. Deletada.
Levantei a vista desolado, confuso. Chegar em Areia Branca sem os livros? Nunca. Imaginava-me viajando de Natal para minha cidade, passando por Lajes, a visão do monte Cabugi que, tal qual um calombo gigante, embeleza toda aquela região árida, estorricada, emocionante até.
À minha frente, sorridente e faceiro, estava um homem de cerca de 45 anos e um vigoroso caroço na testa. Olhei novamente, sem querer acreditar na minha sorte. Aproximei-me satisfeito. O homem conversava alegremente. Vislumbrei, de perto, o elemento identificatório bem no meio da testa. Havia caspa, também, mas o caroço estava lá.
– Bom dia, doutor José Fernandes. Trouxe os livros?
O homem olhou sério para mim. Não era o doutor José. Tentei explicar que estava procurando um homem que ia para Natal, e que tinha aquele nome.
– Mas por que o senhor acha que eu sou o doutor José Fernandes?
Claro que eu não poderia falar da protuberância na região frontal, vulgarmente chamada de lobinho, nem muito menos falar das minhas dúvidas semânticas. Rapidamente, esquecendo a caspa, o nariz adunco, a gravata quadriculada, falei com segurança:
– É que eu estou procurando um senhor elegante, de gravata quadriculada, cabelos soltos à James Deam, que vai para Natal.
O homem pôs-se de pé, ajeitou o nó da gravata e, sorridente, falou que infelizmente não era o doutor José, mas que teria todo o prazer de transportar aqueles livros que, com certeza, seriam úteis na formação dos professores de Areia Branca, cidade que conhecia e da qual gostava muito, especialmente das praias de águas super salgadas, por isso produziam aquele sal maravilhoso. Mas não viajava para Natal, e minhas esperanças iam diminuindo.
Fomos convocados para embarcar no avião, e eu com aquelas dúvidas iniciais: quem seria o Dr. José Fernandes; e seria calombo, catombo ou lobinho? E aquele pesado dicionário embaixo do braço, plastificado, imexido. Imexido? Deixa pra lá.
Durante o voo, pus-me de pé várias vezes, tentando descobrir, naqueles rostos cansados, alguns em pleno sono, o viajante solitário de caroço na testa. Chamei a comissária de bordo e expus-lhe o meu problema: tinha que encontrar aquele homem antes do desembarque. Ela me prometeu que, logo após o pouso em Natal, faria o anúncio através do serviço de som da aeronave.
Pouso perfeito, ansiedades arquivadas, dirigi-me à chefe das comissárias de bordo. Expliquei-lhe que procurava um senhor que era médico em Natal e que tinha um caroço na testa. Notei que ela me olhava com ar de espanto. Saiu por alguns segundos e retornou com um espelho. Entregou-me e falou enigmática:
– Veja bem. O senhor é o único passageiro deste voo que tem um caroço na testa.
Ah, a pancada no espelho. A dúvida semântica, o dicionário embaixo do braço. Senti-me ridículo.
No dia seguinte fui ao aeroporto esperar o médico. Pus seu nome em uma folha de papel e fiquei esperando no setor de desembarque. Não demorou e um senhor sorridente, carregando um carrinho com um pacote de livros, dirigiu-se para mim:
– Boa tarde. Trouxe os livros. Não viajei ontem porque fui ao cirurgião plástico fazer a última revisão de uma pequena cirurgia que fiz na testa. Não ficaram nem as marcas dos pontos – disse satisfeito.
E mostrando a região frontal para mim, fechou a conversa com certa euforia:
– Por que você não faz o mesmo com esse calombo na sua testa?
[…] O HOMEM DO CAROÇO NA TESTA Outubro, 2010 5 […]
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