Publicado por: Evaldo Oliveira | Outubro 13, 2010

MIRANILDO, O DESTEMIDO

 

Desde pequeno Miranildo tinha um verdadeiro fascínio pelos temas que envolviam a morte. Havia lido que logo após a morte o espírito se encontraria em estado de perturbação, confuso, sem compreender que aquele corpo não lhe pertence mais, e que alguns espíritos mantinham a ilusão de se crerem ainda vivos. Chegava a rir de tudo isso. “Para mim, morreu e pronto! Morto não fala nem se mexe!” – não se cansava de repetir.

Mas Miranildo estava tenso, preocupado. Estava para assumir as funções de maqueiro do Hospital Universitário e precisava demonstrar coragem e valentia, atributos que todos esperavam de um nordestino, e ele não queria manchar sua biografia de sertanejo.  

Na primeira semana, todo o seu trabalho foi acompanhado por Ortanato, o velho maqueiro que em breve se aposentaria. E o amigo, em tom de brincadeira, fazia de tudo para tirar a paz de Miranildo:

– Cuidado, rapaz! Você pode ser atormentado pela alma dos mortos que não forem tratados com respeito.

Miranildo chegou cedo ao hospital, naquele que seria seu primeiro dia de trabalho sem a companhia de Ortanato, e faria de tudo para não desmerecer a confiança do amigo, que o indicara para a função. Queria ser um substituto à altura. E pensou com seus botões: “Medo de cadáver, logo eu?!”.

Mal acabara de bater o ponto, o maqueiro já estava sendo convocado para transportar um cadáver, que tinha o corpo coberto por um lençol branco. Miranildo saiu da enfermaria cheio de garbo, conduzindo o cadáver de um homem, cumprindo em silêncio o seu primeiro trabalho solo naquele hospital. Caminhou pelos corredores internos, passou por trás da capela e se dirigiu ao necrotério, que ficava nos fundos do hospital, ouvidos fixados no rangido produzido pelas rodas da velha maca. Abriu a geladeira de três gavetas e, na gaveta do meio, acomodou o cadáver de forma segura.

Minutos depois, dirigiu-se à UTI para apanhar outro cadáver. Miranildo, imbuído de sua responsabilidade, conduzia a maca pelo mesmo caminho, a mesma concentração no rangido das rodas do carrinho. Alguns pacientes olhavam o triste cortejo do fundo de seus aposentos. No necrotério, Miranildo abriu a geladeira e, desta vez, escolheu a primeira gaveta, que ficava junto ao piso. Quando estava terminando de colocar o corpo no refrigerador, ouviu um forte grito bem próximo ao seu ouvido, e se deparou com o morto da gaveta do meio rasgando o lençol que lhe cobria o rosto, que tinha uma cor cinza azulado, em especial em torno da boca e dos olhos, e desesperadamente tentava se desfazer do lençol que lhe apertava o corpo.

Nesse momento, uma paciente precisava ser levada com urgência à UTI, e Miranildo foi convocado pelo serviço de alto falante. Passados alguns minutos, um funcionário da limpeza foi destacado para procurar o novo maqueiro. Ao chegar ao necrotério, o rapaz se deparou com um quadro terrível: um homem pálido, apavorado, aos urros, tentando desesperadamente livrar-se das amarras do lençol e sair da geladeira; no chão, envolto por um mar de fezes, vômito e urina, estava Miranildo, completamente inerte, olhos esbugalhados, sem voz, apontando para a geladeira.

Hoje o ex-quase cadáver trabalha como frentista em um posto de gasolina, próximo ao hospital, e, embora demonstre interesse em conhecer Miranildo, jamais recebeu a visita do bravo maqueiro.


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