Osovren resolveu mudar-se para o interior da Paraíba. Corria o ano de 1955, e a escassez de trabalho no Rio Grande do Norte forçara a decisão da família. Adquiriu um terreno na zona da mata paraibana, próximo à cidade de Pilar, com uma casinha no fundo, algumas árvores em fase de ressecamento e cinco cabritos já crescidos. Alguns parentes de sua esposa residiam em sítios das redondezas, e logo o casal faria novas amizades.
Um ano depois da mudança, Arcanja, a esposa, começou a apresentar sintomas de uma estranha doença, sentindo-se cansada e com falta de ar. No mês de julho do ano seguinte, a doença piorou e Arcanja morreu, para tristeza e irritação de Osovren.
A notícia da morte logo se espalhou pelos sítios e fazendas próximos, e à noite algumas pessoas se dirigiram para a casa da falecida, em pequenos grupos, cada um entoando cânticos pelas veredas e pés de morros. Na entrada, um caboré sonolento, que pousara em uma caveira de boi ressecada, no alto de um mastro, fugiu apressado. Osovren serviu café com bolacha aos presentes que, em seguida, formaram uma roda em torno do caixão rústico, feito ali mesmo. Uma lamparina iluminava cada canto da sala, onde se destacavam grumos de pucumãs no alto das paredes e nos caibros. Alfinim, o cão, saiu de fininho e procurou abrigo entre as pernas de seu dono. E deram início à rezação.
Espontaneamente – todos de cabeça baixa -, foram surgindo cânticos lamuriosos, com algúrios e bendizenças, acompanhados de versos de improviso. A melodia era triste, e algo assim era ouvido na escuridão da noite quente:
– Uma inselença de Nosso Sinhô… Veste esta mortalha, foi Deus quem mandou.
Osovren percebeu que, de algum modo, aquilo parecia um excerto extraído de seu passado recheado de privações. E todos repetiam a mesma frase, em uma ladainha que parecia obedecer a uma melodia ali engendrada, qual um cordel religioso. Depois de algum tempo, entoaram algo assim:
– Ó meu pai, eu vou pro céu, doze anjins vão me levando. De tudo eu vou me esquecendo, só de Deus vou me alembrando.
Osovren, na varanda da frente, aborrecia-se com aquela cantilena repetitória, mas entendia os bons fluidos que emanavam dos votos em louvor a Arcanja. Os meninos dormiam. Ele já ouvira alguns cânticos serem entoados em meio a orações contra males, tempestades e inundações, assim como em rogativas para acabar com as estiagens que castigavam a região onde morara.
A certa altura, já escancarada a madrugada, o grupo iniciou uma cantoria diferente, e Osovren apurou o ouvido:
– Pelas sete marteladas… que Cristo levou na cruz…
Osovren não se conteve. Com um facão em riste, investiu furioso contra os cantantes e bradava, seguindo a melodia que o grupo entoava:
– Pelas sete facãozadas… na cabeça de vocês…
Formou-se um grande tumulto, todo mundo correndo e tentando se proteger dos golpes desfechados por Osovren, e pequenos grupos escondiam-se atrás de árvores, enquanto outras pessoas foram vistas em disparada, escuridão afora, aos gritos e excomungos. Alfinim somente foi encontrado no dia seguinte, tocaiado debaixo da cama.
Pela manhã, três pessoas assistiram ao enterro de Arcanja. Osovren e dois cunhados.
Inselença – Resumo histórico (fonte: Internet)
A inselença constitui uma forma de expressão musical típica da Região Nordeste, geralmente atrelada a costumes fúnebres (falecimentos, missas de sétimo dia e festejos relacionados ao Dia de Finados).
No passado, as inselenças eram praticadas por uma maioria massiva da população nordestina. O descaso das autoridades católicas e a repressão policial são referidos como causas da interiorização desta expressão popular, ficando restrita à zona rural.
A origem das inselenças deriva de rituais fúnebres lusitanos – tradições mouriscas adaptadas à realidade católica-, utilizados nas regiões de Douro, Beira e Minho. No Brasil, seu uso remonta aos primórdios da colonização. Segundo a crença, a interrupção da inselença, antes de seu término, traria como consequência o comprometimento da salvação da alma do defunto e diversos infortúnios à sua parentela.
Esses rituais dividem-se em Inselenças da Hora – objetiva comunicar o falecimento aos parentes -, as Inselenças da Mortalha -, realizadas após o falecimento, quando se põe a mortalha no defunto -, e as Inselenças de Despedida. Há também as Inselenças de Chuva, realizadas na região do semi-árido nordestino. Esta, conhecida de Osovren.
Parabens Evaldo,
As historias do interior do Brasil é a que valem para aqueles que gostam de vivenciar a realidade.
No Rio Grande do Sul temos muitas historias parecidas de minhas vivencias que um dia ainda vou escrever.
abs
By: Marco Pingret on Junho 17, 2011
at 2:09 am
Marcos Pingret, sei que você tem muita sensibilidade e espírito crítico, condições indispensáveis para quem se propõe a ser escritor. Em frente com seu sonho.
By: Evaldo Oliveira on Junho 17, 2011
at 3:56 pm