Publicado por: Evaldo Oliveira | Setembro 24, 2011

O VOO DE ORACI

               Os homens são pássaros

               que amam o voo

               mas têm medo de voar.

Rubem Alves

 

Oraci era um cupim  subterrâneo, desses que constroem imensas galerias no solo –, e se movimentava nesses túneis com desenvoltura. Seu pai era um dos artesãos da colônia, e muito respeitado. Era ele quem inventava os labirintos que dificultavam a localização e destruição das colônias, onde cada um cumpria sua função com o rigor de uma caserna prussiana.

Desde pequeno Oraci ouvira falar de outros cupins que haviam conquistado o mundo, em voos argonáuticos, desafiando deuses e ventanias, formando novas povoações – colônias – e promovendo expansões em territórios desconhecidos, a partir de uma rainha. Sabia que alguns até conseguiram chegar ao outro lado do rio, e isso o deslumbrava.

Nascera e crescera em um quintal grande, quase uma chácara, em uma rua próximo ao centro, e de lá conseguia vislumbrar o brilho das luzes – e a ponta da torre da igreja, que sabia ser bonita. Sabia, também, que havia um sino no alto da torre, e se deliciava ao ouvir suas badaladas. Tinha alguns amigos, mas seu sonho era um dia fugir dali, ganhar novos ares, brilhar. Mas como? Seu pai lhe avisara que todo cidadão  cupim, sem que se soubesse por que, em determinado momento ganhava dois pares de asas, e isso o deixara muito ansioso.

Era mês de agosto, o vento solto e xereta o avisara. Oraci percebeu que seu organismo apresentava alterações que nunca percebera ou sentira. Falou com seu pai, Oladed, e este o advertiu:

-Meu filho, como já o avisei, você está ficando adulto, e vai ganhar seus dois pares de asas. Espero que tenha sabedoria para saber usá-las. Nossa espécie precisa de novas colônias para se perpetuar. Voe em busca de áreas afastadas, onde seus filhos e os filhos dos seus amigos possam se desenvolver em segurança. Esta é a sua missão. Lidere os outros. Conduza-os ao outro lado do rio.

Oraci fez ar de riso. Olhou para suas costas, e depois de algumas tentativas começou a ensaiar seu primeiro voo. Foi para um lado, bateu em uma árvore, porém não se machucou. Uma velha cigarra olhou para um besouro ao lado e piscou o olho. Era um fim de tarde quente, e ele não queria perder tempo. Alçou voo. No início, meio desajeitado, quase foi jogado longe por uma rajada de vento. Mas conseguiu manter-se firme, e mirou um grupo que já seguia bem adiante. Os colegas à frente diminuíram o ritmo, para que Oraci a eles se integrasse, mas ele achou que sua velocidade era maior que a dos outros, esboçou um sorriso e continuou, com ar austero e vitorioso. Como é bonito ver a cidade daqui de cima – pensou o jovem cupim. Olhou para trás e pôde ver a revoada de companheiros ganhando o espaço atrás de si, e orientou-se no rumo das luzes. Deu a volta na esquina do cinema da cidade,  e se maravilhou com a beleza da principal,  voando a meia altura.

O jovem cupim estava deslumbrado, com o coraçãozinho a mil. Esse prédio bonito deve ser a prefeitura, de que meu pai falou. Ali está a pracinha. Ah, a igreja. Depois eu vou lá. O brilho das luzes no alto desses postes é fascinante, irresistível, esplendoroso – pensou. Deu mais uma volta, e ficou fascinado por aqueles fachos de luz. Alucinado pelo brilho, fechou os olhos e partiu em direção à lâmpada.

Com o corpo queimado, contorcendo-se de dor, viu seus dois pares de asas se desmembrarem do corpo, e percebeu que não estava só. Agonizante e atordoado, olhou em volta e viu dezenas de cupins se debatendo no chão, já sem asas, desidratados, arfantes.

Oraci desconhecia uma antiga história sobre Minos, o rei de Creta,  na Grécia. Este, antes de se tornar rei, tentou enganar o deus Poseidon, sacrificando um touro comum no lugar de um belo touro branco que sairia do mar. Poseidon, para se vingar, fez com que a esposa de Minos se apaixonasse pelo belo touro branco, e dessa paixão nasceria o Minotauro, com corpo de homem e cabeça e cauda de touro.  Minos, com medo do terrível animal, contratou o maior artesão da antiguidade para construir algo que pudesse conter o Minotauro. O artesão idealizou e construiu um belo e complicado labirinto na cidade de Cnossos, em Creta. O rei passou a cobrar tributo da cidade de Atenas – sete rapazes e sete donzelas – para alimentar aquela terrível criatura.

Um belo jovem, chamado Teseu, ofereceu-se como uma das vítimas, mas estava decidido a matar o Minotauro. Ariadne, a filha do rei Minos, apaixonou-se pelo herói e resolveu ajudá-lo, entregando-lhe um novelo de lã para que, no momento da saída do labirinto, não se perdesse naquele emaranhado de caminhos. Usando uma espada mágica que ganhara de Ariadne, Teseu conseguiu matar aquela terrível e perigosa criatura, e, de quebra, salvou algumas pessoas que ainda estavam vivas, perdidas dentro do labirinto.

Percebendo que o labirinto não era intransponível, o artesão e seu filho foram colocados em uma ilha-prisão, à beira do mar, por determinação do rei Minos. Aproveitando o tempo livre, o velho artesão construiu dois pares de asas para que ele e seu filho pudessem escapar daquela ilha. O filho, descumprindo as determinações de seu pai, voou muito alto, e a cera que prendia suas asas derreteu com o calor do sol, vindo o jovem a se espatifar sobre os rochedos.

E, tardiamente, descobriu que a estupidez pode matar.

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Atenção, estudantes: Artesãos é o PLURAL DE ARTESÃO, o artista. Artesões é o PLURAL DE ARTESÃO, enfeite de abóbada. Assim sendo, o certo é: Os artesões da igreja foram produzidos por artesãos pernambucanos.

Laércio Lutibergue, professor e revisor de textos (Google).

 

 

 

 

 


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