O sol oferecia-se por inteiro naquela manhã de domingo. No quintal, a grama verdinha sentia-se ofendida com a presença da sujeira deixada pelos dois cachorros da casa – Ressaca e Beiçola. Os dois, nesse momento, manhosamente se esgueiravam atrás de um banco, como que adivinhando o pensamento da grama.
Fui à cozinha, preparei o café, que me pareceu com gosto de ontem. Calcei os tênis, tirei a esquecida bicicleta do quartinho do quintal e saí sem qualquer compromisso, fosse com a bússola ou com o relógio. Vaguei pelo plano piloto, talvez em busca de uma padaria para satisfazer minha necessidade de cafeína.
Em frente a um prédio, três homens discutiam de forma acalorada. Um deles, musculoso, tipo bombadão, apontava com seu indicador de baqueta de surdo para uma plaqueta, e bradava:
– Foram três tiros no coração! Todos no coração!
Um pouco assustado, passei pela padaria sem olhar, e continuei o meu roteiro quase inédito, ainda com o codinome sem-café e sem relógio. Subia pela rua, quando percebi um grupo de cinco pessoas, com ar austero, tentando encobrir o foco da conversa com os corpos. Deu para ouvir o que o rapaz de cabelo à moicano perguntou com ênfase de lutador de MMC:
– E esse primeiro, o que é?
– É carne de sol – respondeu com desdém a moça de piercing no nariz.
– Claro que não é – respondeu um rapaz de bermuda quadriculada. É carne moída ou bife à rolê.
Ninguém concordou. Então, era carne de sol, supus.
– E esse segundo? – virou a página.
– Ah, esse eu tenho certeza. É galinha ao molho pardo.
– Quero ver se vocês acertam o terceiro. E apontava para um papel amassado que trazia na mão.
– É feijoada, mas com feijão branco.
Todos concordaram. Era feijoada, mas com feijão branco, pela expressão do grupo. Tornaram a olhar em volta, para terem a certeza do isolamento.
Seriam aqueles pratos uma senha? O primeiro foi carne de sol; o segundo, galinha ao molho pardo, e o terceiro foi feijoada, porém com feijão branco. Retornei intrigado para casa – esforçando-me para guardar os detalhes da sequência -, ainda como sem-café, mas agora ligado no relógio e na bússola. Era quase meio dia.
Após o banho, e ainda confuso, tentava decifrar as palavras e os fatos observados. Talvez um crime ligado a algum restaurante, imaginei. Três tiros no coração. Referência a alguns pratos da nossa culinária. Pensativo e curioso, liguei para um amigo, delegado de polícia.
Meu amigo riu, riu e riu. Do outro lado da linha, eu, calado e desconfiado. Ainda com restos de riso na boca, ele me clareou a mente, turva pelo imbróglio matinal. E explicou calmamente: o grupo que estava discutindo sobre os tiros no coração estava participando de uma prova para trabalhar em empresa da área de vigilância e segurança. O outro, apenas conferia as respostas da prova de um concurso que haviam feito para trabalhar como cozinheiro.
Afinal – pensei aliviado -, o que são três tiros no coração de uma figura de papel? E o que tenho eu a ver com carne moída, galinha ao molho pardo ou feijoada?
Antes de almoçar, passei discretamente pela cozinha para conferir os pratos. Que alívio.
O susto foi grande , mas no final o enigma foi desvendado
Um abraco e bom almoco
By: dodora, on Janeiro 29, 2012
at 4:06 am