Ribamar, Laura, Carminha, Rivaldo e Dorinha. Ribamar e Laura, os pais; Carminha, a filha mais nova; Rivaldo, o do meio, e Dorinha a filha mais velha. Uma família comum, que poderia constar de qualquer folhetim. Aliás, alguns desses nomes foram tirados do Almanaque Capivarol, que Ribamar colecionava.
Sábado pela manhã, a família inteira na beira do rio Mearim aguardando uma embarcação que os levaria à cidade onde morava Salatiel, o irmão mais velho de Ribamar, que dispunha de melhor situação financeira. Apesar de morarem na mesma região, há anos os irmãos não se encontravam.
Era um dia acinzentado e, no barranco do rio, o assobio da cruviana trazia mais desassossego e inquietação. O rio Mearim banha as cidades de Barra do Corda, Esperantinópolis, Pedreiras, Trisidela do Vale, São Luiz Gonzaga, Bacabal, Vitória do Mearim e Arari, todas no estado do Maranhão.
No barco, passageiros ansiosos. Aqui e ali, pessoas entravam e saíam, e a viagem continuava sem qualquer contratempo. Três horas depois, a embarcação chegava à cidade. Todos se prepararam para o desembarque. Ribamar foi acertar a conta com o dono do barco. O dinheiro não dava para cobrir a passagem da família. Na popa, afastado do restante dos passageiros, Ribamar discutia, gesticulava, até chegar a um acordo com o barqueiro. Tudo resolvido. Fez sinal para a mulher, e se dirigiram todos para a casa de Salatiel.
Abraços, votos de boas vindas, aconchego nos meninos, café na mesa, onde um cuscuz se exibia ao lado de um prato de batata doce. Tapioca e farinha de puba faziam parte das guloseimas. Salatiel, desconfiado, perguntou:
– Ribamar, você não tem três filhos? Onde está a menina mais velha?
– Não teve jeito. Eu paguei nossa passagem com ela. O dono do barco a levou.
Salatiel desesperou-se. Como o irmão poderia ter feito aquilo! Apressado, correu para o quarto, apanhou alguns pertences, pôs a arma na cintura e desapareceu. Conhecia o dono do barco, o que aumentava sua preocupação. Apanhou uma pequena lancha e saiu em disparada, na tentativa de encontrar o barco e a criança.
Duas horas depois, retornou Salatiel conduzindo a menina pelo braço. O comerciante tivera muita dificuldade para reaver a posse da criança. O barqueiro insistia em levá-la para casa. Meio sem jeito, e desorientada, Dorinha correu para abraçar os pais, com um chorinho contido.
Ontem, escassez e miséria, que ainda reinam absolutas nas terras dos bravos Guajajara, a maior tribo indígena do Brasil, à qual pertenceu Caiuré Imana, conhecido como o Cacique Indomável por sua bravura e disposição para a luta.
Hoje, Maria das Dores trabalha em Brasília como assessora em finanças públicas. De sua sala, na Esplanada dos Ministérios, vislumbra ao longe as águas tranquilas do Lago Paranoá, onde um ventinho maroto empurra um barquinho branco, com os custos debitados ao ócio.
Um rio e uma tribo exclusivamente maranhenses. Um bravo povo. Um estado tão ou mais pobre que antes. Uma família corroída pela miséria.
E uma criança no jogo do quase nada.
Muito boa essa sua crônica, amigo.
Revela um Brasil cruel, com o qual todos nós queremos acabar.
Um abraço,
Omar
Ps. Ainda bem que tem gente valente e disposta no mundo, como o homem que buscou a menina. Viva essa gente brava e decente!
By: Omar on Setembro 16, 2012
at 3:13 am
Caro Omar, sabemos todos que o Maranhão precisa urgentemente se livrar dessa velha lixeira em que se meteu há anos, onde a pobreza do povo contrasta com a riqueza e a opulência de muito poucos. Esse povo, com o peso de sua miséria, não terá condições de dar uma resposta ao que aí está.
By: Evaldo Oliveira on Setembro 16, 2012
at 1:24 pm
Meu caro Evaldo: Nesse “acotovelamento de ideias” você consegue reunir tragédia e lirismo em cativante estória. Dorinha, felizmente resgatada, pertence à cultura da pobreza, da ignorância. Relembro uma leitura que me impressionou, ainda muito jovem. No livro do Gênesis está escrito que Abraão, Patriarca do povo hebreu, temendo sofrer perseguiçāo do Faraó, orientou Sara, sua mulher, a negar essa identidade, passando-se por sua irmã. Isso não impediu que o Faraó a “possuisse”. Remonta a nossas origens essa prática ignominiosa de se usar a mulher como objrto de troca. Ainda hoje, em alguns países do Oriente Médio, mulheres são permutadas por camelos. Que tal? Abraços, Assis
By: Francisco de Assis Câmara on Setembro 17, 2012
at 2:07 am
Infelizmente o problema e global. Um pouco mais onde a ignorancia impera.Mas isto nao impede, que mesmo nos paizes mais desenvolvidos, a mulher , nao seja usada como troca para algunha coisa.E nos mulheres, temos conciencia deste abuso, quando somos chamadas a parte fraca.
O progresso, tem conseguido, subir alguns degraus mas ainda tem muito o que se galgar, para chegar ao pico da montanha.
Obrigada Dr Evaldo por escrever sobre este assunto asustador, principalmente quando se trata de crianca.
Nao sou uma fanatica religiosa, mas agora tenho que repetir, as palavras da minha amiga.
SO JESUS NA CAUSA.
By: dodora on Setembro 18, 2012
at 4:06 am
Ao final, entendemos como uma criança pode ser usada como moeda de troca por uma família em desespero. O que não entendemos é que um estado possa atravessar décadas e décadas sem desenvolvimento algum, embora as famílias dominantes fiquem mais ricas a cada dia. Quando não dá para se eleger pelo próprio estado, vai para outro ainda menos desenvolvido e concorre por lá, E GANHA A ELEIÇÃO. E tudo volta ao ritmo d’antes. E o povo na miséria secular, com suas escolas públicas e hospitais sucateados, em um processo sem retorno. Entra um, sai outro. E TUDO COMO D’ANTES. Uma pena!
By: Evaldo Oliveira on Setembro 19, 2012
at 1:13 am
Evaldo, este texto transportou-me a um outro, de atitude adversa, escrito por Fernando Sabino, intitulado A ÚLTIMA CRÔNICA. Nele a comoção nos domina, diante da atitude abnegada de um pai que, desprovido de uma boa condição financeira, encontra uma maneira simples para comemorar o aniversário dos três aninhos de sua filhinha. E, num botequim, ao lado da mulher, ante o olhar ansioso da menina, conta seu escasso dinheiro e pede uma única fatia de bolo ao garçom que lhe atendeu prontamente. A mãe de fisionomia humilde, retira de sua bolsa três velinhas pequenas, olha ao redor para ver se estava sendo observada, e as espeta no minúsculo bolo. Acesas as velas, os três celebram com um PARABÉNS PRA VOCÊ, entoados num balbucio, porém, satisfeitos com o sucesso da celebração.
Confronto os fatos do texto publicado por ti, Evaldo, com este, logo depois de assistir ao noticiário na TV, sobre a morte de uma menina de 13 anos, por esganadura e tendo como principal suspeita a mãe (ou a madrasta?)
Acontecimentos que nos deixam confusos…
Reconheço que fatos desta natureza estão se tornando, a cada dia, mais banais nesta nossa sociedade.
Eleição nenhuma existe para resolução desses casos e de tantos outros citados por ti.
Então, retorno às lembranças de um tempo em que vivemos, quando nada disso existia, como não existiam: AIDS, SÍNDROME DE PÂNICO, BIPOLARIDADE e muito menos, o maior causador de tantas desgraças hoje, A D R O G A .
.Um abraço.
By: sônia on Setembro 21, 2012
at 12:05 am