Início do ano de 1974. Eu, recém-saído da Residência Médica, terminara de preencher minha primeira declaração do Imposto de Renda. Em Brasília, terminada minha pós-graduação, iniciava minha saga de contribuinte. Formulário do Imposto de Renda pronto e conferido, dirigi-me ao Posto da Receita Federal no centro de Taguatinga, na Avenida Comercial.
O posto da receita funcionava em uma loja que se assemelhava a um banco, com um bonito mezanino, onde se acomodava boa parte dos funcionários. Lá chegando, por volta do meio dia, dirigi-me à moça do balcão e entreguei o formulário. Naquele momento, eu era o único cliente. A funcionária, ao examinar o documento, falou:
– Está faltando sua assinatura na declaração. Por favor, assine aqui.
Quando me preparava para assinar, o susto:
– PA!!!
Foi uma pancada muito forte, seca, sobre o balcão, grosseira como papel de enrolar prego, e quase atingindo meu braço. À minha frente estava um guarda forte, rosto redondo, olhos esbugalhados, empunhando um ridículo cassetete, aos berros:
– O senhor não pode aglomerar! Não pode escrever sobre o balcão. Eu tenho ordens para não deixar aglomerar, e não pode utilizar o balcão para escrever!
E mantinha erguido o seu pesado instrumento de trabalho de setenta centímetros, apontando para minha cabeça.
Imagina a imagem: meio dia, um magricela aprendiz de contribuinte, com um papel na mão, sozinho em uma sala, e um cassetete erguido em sua direção por um sujeito forte, boçal e soberano, e de miolos moles.
Humildemente, perguntei:
– Posso escrever sobre minha coxa?
Ele pensou um pouco, olhou para cima e respondeu:
– Na coxa, pode!
E comecei a escrever meu nome na declaração, utilizando uma prancheta que a moça me oferecera. Percebendo que o piso era de tábua corrida, com algumas peças soltas, dobrei a perna esquerda e a utilizei como apoio para a prancheta e, fingindo que me desequilibrava, fiquei pulando para um lado e para outro, equilibrando-se sobre a perna direita. Enquanto escrevia, ia batendo com força nas tábuas do piso, e isso produzia uma barulheira infernal. Nesse momento, o gerente apareceu no mezanino:
– O que está acontecendo aí embaixo? Que m… é essa?
– É que o guarda falou que vai rachar minha cabeça, se eu escrever no balcão. Ele falou que eu não posso aglomerar – dizia eu sem parar de pular, aos gritos. Àquela altura, várias pessoas se aglomeravam na porta do posto, assustadas com aquele quadro patético, digno dos países mais subdesenvolvidos deste pobre mundo.
Terminada aquela complicada tarefa – e já banhado de suor -, voltei a ser bípede. Extenuado, entreguei a declaração à moça e fui embora.
Era mais um autoritário soluço da ditadura, em que as gotículas de flugger, liberadas aos borbotões, empestearam o ambiente.
Soluço do monstro. Ali, estupefato, neófito nos imbróglios declaratórios, e cansado, torci por uma toalete orofaringotraqueobrônquica. Estava com gosto de fel na boca.
Garganta desobstruída, gritemos!
EVALDO ALVES DE OLIVEIRA
Médico Pediatra e Homeopata
Sócio Correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do RN
Meu amigo, tempo inesquecível aquele (décadas 64 a 85), quando tu, jovem pacato da salinésia, sentiu de perto as consequências do regime em que reinavam a censura, a tortura, a falta da democracia em nosso país.
E o que fazermos com a ditadura atual?!
Não nos surpreenderemos se as Forças Armadas (???), hoje, forem requisitadas para intervirem na situação em que nos encontramos contra a qual nada poderemos fazer… ou podemos?! A que(m) recorrermos?!
Gritemos, então!
Um abraço.
By: sônia on Dezembro 7, 2012
at 12:56 pm
Oi, dá licença Dr. Evaldo? Tardiamente estou dando um pulinho por aqui. Se eu soubesse que havia tantos OUTROS escritos bonitos já teria aparecido. Achei que tudo de sua lavra era republicado no Era uma vez do C. Alberto. Puxa! Minha admiração pela sua pessoa aumenta cada vez mais. O seu sofrimento naquela época de botas e cacetes foi como o ferreiro forjando o homem de hoje que – embora de uma pequena cidade por muitos desconhecida – encerra um patrimônio de saber. Saiba que é difícil encontrar um médico que saiba Português como o amigo. Digo isso com a experiência não só de profissional como também de vida. Evaldo, a partir de agora vamos fazer a contagem regressiva para nosso encontro em AB, no ano que vem. Rapazes, garotas, vamos lá!
By: RICARDO DIMAS RAMOS CARNEIRO on Dezembro 7, 2012
at 11:54 pm
Sônia, de fato, nós bem sabemos os transtornos de uma ditadura. Em seguida, eu seria professor de uma Faculdade, e dá para imaginar dar uma aula tendo olheiros do SNI na sala. Só quem passou por isso sabe o que de fato significou. E nós o sabemos.
By: Evaldo Oliveira on Dezembro 8, 2012
at 12:23 am
Caríssimo Ricardo, pelos seus escritos, percebe-se o quão bem formado e informado você é. Com toda essa carga, é um orgulho ter um texto meu elogiado por você. Um abraço.
By: Evaldo Oliveira on Dezembro 8, 2012
at 12:24 am