Publicado por: Evaldo Oliveira | Setembro 21, 2014

CURRICULUM VITAE DE CRIANÇA

Menino, o que você fez na vida, quais suas perspectivas, seus sonhos, seus interesses, suas marcas, seus arranhões, suas cicatrizes? Afinal, quais as suas credenciais? Desse modo, fui inquirido pelo Destino, em janeiro de 1960. É que eu estava de mudança para Natal, e uma avaliação de possibilidades fazia-se necessária. Uma espécie de planejamento estratégico sem metas nem ponto futuro. Um Curriculum Vitae infantil.

Sr. Destino, o que fiz, nesses catorze anos de vida, foi pouco, face aos perigos a que a vida me expôs. É que não tenho grandes posses, e meu círculo de amizades é pequeno. Mas conheço bem os perigos dos caminhos, os riscos das encruzilhadas, a doçura do afeto e o gosto travoso do fel da indiferença. Só tenho catorze anos, mas trago comigo a dureza do puro aço, forjado nas labaredas das dificuldades.

Durante o ano de 1952, Sr. Destino, estudei no Círculo Operário, uma escola pobre, jamais citada em qualquer publicação lida por mim. Parece, até, não ter existido. É Rua do Meio. No Círculo Operário, um semestre na Carta de ABC e outro na Cartilha. Lá, conheci as sabatinas, em que o peso da palmatória se sobrepunha ao rigor do bom senso. Conheci também o castigo de joelhos em cima do milho. No contraponto, aprendi a cantar o Hino Nacional e a ser solidário, a repartir o espaço com os colegas e a lavar as mãos para merendar, além de conhecer os princípios da disciplina.

Estudei no Grupo Escolar Conselheiro Brito Guerra nos anos de 1953, 1954, 1955, 1956 e 1957, quando fiz o Exame de Admissão, onde boa parte da molecada perdia o rumo, e fui estudar na Escola Técnica de Comércio por dois anos. Lá, conheci um pouco da estupidez humana. Incontável.

Senhor Destino, veja como é curto o meu relatório. Três itens. Aqui, não fiz citações sobre atividades fora da escola, as extracurriculares. Não falei das coisas da vida, da felicidade do encontro e das dores dos dias de lágrima. Eu, criança, tomava conta de uma bodega junto com meu pai. E havia plantão todos os domingos. E feriados também.

Não incluí nesse relato os medos que as noites escuras traziam, amplificando os ruídos vindos do rio que corria em frente, travestindo-os em estrondos de trovão. Os barulhos vestiam roupa de fantasma e ficavam a noite inteira cortando meus sonhos bons, incluindo no roteiro assombrações e devaneios aterrorizantes. Também não consta a dificuldade de entender por que, sendo comerciante da Rua da Frente, meus pais só tinham amigos pobres.

Não incluí a afeição que sentia/sinto pela família Cirilo (José Cirilo, dona Mariinha, Maria Laís, Ceci, Anália, José e Chico, além de Raimundo), os Buendia de minha Macondo. Pessoas verdadeiras, íntegras, trabalhadoras, honestas, e igualmente esquecidas.

Do mesmo modo, não entraram minhas visitas ao mercado público, quase todas as manhãs, quando ficava assistindo aos repentistas se digladiarem em lutas argonáuticas. Em outros momentos, assistia aos encantadores de serpentes e aos vendedores de remédios milagrosos que, com um microfone no pescoço e espuma no canto da boca, comercializavam falsas ilusões. Não constam os passeios pelas praias de águas limpas, admirando os siris em sua exibição matinal, expondo suas patinhas cortadeiras que muito me assustavam. Também não constam as estórias do bicho papão, primo do papa-figo, que comia o fígado das crianças nas noites sem lua. Ali, não consta o medo que tinha dos buzuocos (como eram chamados os primeiros protestantes da cidade)

Também não listei meus empregos de criança. Sim, empregos de criança. Trabalhei com um dentista, com um médico, trabalhei como auxiliar de envernizador em uma pequena fábrica de móveis e como auxiliar de empacotador nas Lojas Paulista, mas nada disso consta desse relatório.

No meu curriculum vitae não consta o trabalho de agricultor urbano quando, em algumas manhãs de domingo, ia com meu pai para a ilha trabalhar em sua roça de milho e feijão. Lembro dos pezinhos brotando da terra, rachando o chão fértil, acompanhava seu crescimento, o surgimento dos pendões, o cheiro do verde, as vagens de feijão botando o pescocinho para fora, e a melancia ensaiando sua festa de 15 dias, junto com uns melõezinhos invejosos na ponta da leira, com seu olhar ictérico.

Finalmente, não consta o medo que tinha de passar pela Rua da Saudade, por causa do cemitério. Lembro, mas não está nesse relatório que lhe disponibilizei, de que certa vez, no carnaval, quando passávamos em frente ao cemitério, com o Bloco da Chica Pelada, capitaneado por meu irmão Mauro, ter sentido nas canelas finas um formigamento, tipo repuxão, quando gritaram que as almas estavam saindo para entrar no nosso bloco.

Este é o meu curriculum vitae, Sr. Destino. E vou para Natal pensando em vencer na vida, e meu pai está doente.

Que Deus o ajude, balbuciou o elemento desconhecido.

E dirigiu-me um terno olhar de fautor, antes de sumir. Exatamente seis anos depois, estaria me matriculando no curso de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

Por tudo isso, o meu júbilo pela vida.


Respostas

  1. Caro Evaldo, considero este teu Currículo riquíssimo! Justifica todas as conquistas que fazem de ti o homem admiravelmente respeitado por todos que te conhecem. Se conseguiste tornar-te “um puro aço” com apenas catorze anos o que dirias de ti hoje??? Enfrentaste duros revezes da vida sem, no entanto, por em dúvida tua FÉ e, sob o olhar atento do Seu Silvino. Não estavas sozinho…E não deixastes também de viver as peraltices próprias da idade.
    Quem, Evaldo, dos jovens adolescentes, hoje, se habilitaria a gir como tu o fizeste, com o propósito que te encorajou a vencer todas as posteriores dificuldades???
    Diferentemente de Ícaro, que recorreu à inteligência do pai Dédalo, com a ajuda do rei Minos, alçaste voos com a tua própria força, adquirida, quem sabe, nas “labaredas das dificuldades”. E isto te conferiu a felicidade merecida.
    Envaidece-me ter partilhado um pouco da minha meninice contigo e, mais ainda, reencontrar-te “realizado” tantos anos depois.
    Que o SENHOR continue te protegendo.
    Um abraço.


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