No sábado, o grupo da mesa 45 estava reunido. Aprazível, a conversa fluía tal qual água de riacho, recheada de estórias sem futuro, causos jamais acontecidos e muitas vezes contados, o riso como acompanhante obrigatório. O cheiro do lúpulo contaminava o ambiente lotado de amigos. O nome do bar era sugestivo: Bar dos Amigos.
Dias antes, o assunto na reunião girou em torno das mulheres, com suas frivolidades. Cada um na mesa achava-se especialista nesse tema. No encontro seguinte, o futebol tomou conta da mesa, e a cerveja mais uma vez rolou solto.
Naquele sábado, a conversa do pessoal da mesa 45 girava, desde cedo, exclusivamente em torno do Flamengo. Afinal, todos eram flamenguistas, e o tema era os últimos jogos do Brasileirão.
Da porta, uma voz de barítono aposentado ecoou desafinada e metálica:
– Ah, cambada de flamenguistas! Vocês não sabem a emoção que é torcer para um time pequeno, lutador, como o Grad lá da minha cidade.
– Grad? – perguntou alguém da mesa.
– Sim. Grêmio Recreativo de Arraial Dourado, lá em Mato Grosso. O pessoal de lá torce com amor, a família inteira gritando na beira do campo. Aliás, como futebol é cultura, aqui vai essa: Machado de Assis, em Dom Casmurro, nos brinda com uma expressão de José Dias em uma conversa com Bentinho – a alopatia é o catolicismo da medicina. E eu aqui completo: o flamengo é o catolicismo do futebol.
Os olhares se cruzaram no ambiente. Ninguém entendeu. Ou todos entenderam? Acho que todos entenderam, e muito bem. Ninguém ousou responder.
Armênio era conhecido de todos ali, pois já fizera parte do grupo. Sua especialidade era falar de caçadas. Certa vez, percebendo que o grupo evitava suas insinuações sobre esse tema, retirou-se por algum tempo e retornou de forma lenta. De repente, deu um pulo e caiu de pés juntos na frente de todos, gritando:
– Bam!!!
O pessoal ficou assustado, e todos se entreolharam. Foi quando Armênio disse:
– Por falar em Bam, lembrei-me de uma caçada. Certa vez eu estava no pantanal com uns amigos e apareceu uma onça pintada…
Sem outra opção, o pessoal da mesa 45 viu-se obrigado a, mais uma vez, aturar Armênio e suas atitudes sem noção. Era um encontro agendado pelo Whatsapp, com o cuidado para que a notícia não vazasse. Todos satisfeitos até a chegada de Armênio. Almeida, sentado ao seu lado, conduzia o copo na direção da boca, de olho no colarinho do chope que Amarildo lhe preparara com cuidado. Armênio segurou o braço do amigo tentando pontuar algo. A cerveja esparramou-se na mesa e na camisa. O pessoal não se manifestou. Apenas alguns pigarros eclodiram na mesa, sinalizando o desconforto. No momento seguinte, justo quando o vizinho do outro lado tentava se virar para resgatar uma asa de frango no prato distante, surgiu a mão de Armênio segurando e massageando seu ombro. Era para que ele risse de um caso engraçado de que acabara de lembrar. O amigo bateu com a mão no prato, jogando os pedaços de frango para longe.
De pronto, os smartphones começaram a emitir aquele aprazível sinalzinho. Na tela, um comando: ativar plano B.
Em dez minutos a mesa 45 estava vazia. Amarildo conhecia a estratégia, e o chope teria de aguardar por 45 minutos.
Não demorou muito, e algumas mensagens surgiram na sequência:
– Onde vocês estão? Alguém poderia me responder?
E novamente a mesa 45 voltou à contumaz algazarra, após um estratégico Whatsapp de Amarildo.
Almeida, com ar pensativo, falou baixinho:
– Em qual capítulo de Dom Casmurro encontra-se aquela citação do Armênio com relação ao Flamengo?
Da porta, uma voz de barítono aposentado gritou:
– Está no capítulo CXLIII!
Texto hilário, Evaldo!!! E desse Armênio, “Deus nos livre…” mas gostei do confrontativo entre a alopatia e o flamengo.
Continua a escrever, amigo; pois, o fazes muito bem sempre!
Um abraço.
By: sonia on Outubro 16, 2014
at 11:27 pm