O Centro de Saúde nº 1 do Guará-I – Distrito Federal – desenvolvia um trabalho de assistência primária à saúde digna dos maiores elogios, pelos idos da década de 1990. A direção, a equipe médica e de enfermagem e os auxiliares de saúde desdobravam-se em seu empenho em prol do paciente, em especial das crianças e das gestantes. Ali trabalhei durante vinte e cinco anos.
Ambulatório de Pediatria. Manhã de agenda lotada, como sempre. Da porta da sala onde eu trabalhava, chamei o paciente Remerson (nome fictício) para o seu atendimento. Estava sentado no banco à frente do consultório e continuou de cabeça baixa, desligado, alheio a tudo, sumido em seu mundo de insipiência. A avó pegou-o pelo braço e entrou na sala.
Remerson era um garotão de doze anos, corpo pesado, já com sinais de obesidade incipiente. Durante toda a consulta ficou calado, escaneando com seu olhar vago os diversos pontos da sala.
– O que há com o garoto? – perguntei
– Ah, doutor, ele bobou.
– Há quanto tempo?
– Há uns dois anos ele foi ficando estranho em casa e na escola, foi se desligando e hoje está assim; bobou. Um meninão desse tamanho, doutor, e não estuda – complementou a avó com ares de resignação.
Iniciei um exame físico detalhado naquele garoto. Os ditames básicos da propedêutica, hoje quase abandonados (inspeção, palpação, percussão e ausculta), eram seguidos com esmero. Ali também avaliávamos os dados do crescimento e do desenvolvimento de todas as crianças, com atenção especial ao Cartão de Vacinação. Daí o meu entendimento de que a puericultura não é outra coisa senão o atendimento pediátrico bem feito, seja no ambulatório ou no pronto-socorro.
Como fazia com todas as crianças, passei ao exame otoscópico. Aí veio a surpresa. Os dois condutos auditivos estavam totalmente obliterados por cerume ressecado que mais parecia barro. Pedi para esperar lá fora que eu o chamaria no final.
Novamente no consultório, providenciei a lavagem de ambos os ouvidos, de onde saíam aglomerados de cera ressecada. No meio da lavagem, Remerson deu um grito:
– Vó, estou ouvindo tudo de novo!
Remerson deixou o consultório eufórico, aos pulos, feito um cabrito solto no pasto, e sumiu no corredor.
Um caso medieval de surdez que ceifou dois anos da vida de uma criança. Um pouco à frente, o estigma de doente mental à espreita.
Hoje fico imaginando quantas tomografias computadorizadas seriam realizadas, outro tanto de ressonâncias nucleares magnéticas, o P300, Eletroencefalograma com mapeamento cerebral e outros exames, na tentativa robotizada de um diagnóstico tão simples.
Interesse pelo que se faz. Respeito ao ser humano.
–
EvaldOOliveira
Sócio Correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do RN
É isso aí, Evaldo.
Tá faltando bons profissionais que com as atitudes básicas corretas podem evitar “desgraças”.
A maioria dos médicos mal olham os pacientes. E a anamnese é praticamente zero. O fim da picada!!!!!
By: sonia on Março 19, 2016
at 1:53 am
Realmente o exame clínico mudou muito e quem sofre são os pacientes! Belíssima crônica!! Abs.
By: Alice Carolina on Março 19, 2016
at 11:01 am
Que belo texto, Evaldo!
Indubitavelmente este garoto conservará o fato e tua pessoa em sua memória, bem como em seu coração. Restituiste a vida dele já quase destruída. Fato raro, hoje, de se encontrar em muitos dos nossos hospitais…
Bem o dizes: “Interesse pelo que se faz.. Respeito ao ser humano.”
Tudo isto faz parte de tua índole.
Grande abraço.
By: Sônia on Março 20, 2016
at 2:38 am
Tenho pressão alta, estava tratando no Hospital São Lucas em Santos, mas a semana passada fui em uma consulta no INCOR em São Paulo, não desmerecendo o Hospital São Lucas, mas lá( INCOR)é outro tratamento que é dado.
Estou fazendo exames, espero sair um novo Jerônimo com um passaporte com validade ilimitada.
Eu já trabalhei no INSS, 17 anos, conheci vários médicos, e deles sempre tive incetivo, ajuda pra carregar a cruz, bons companheiros nas horas difíceis, e nas horas boas. Pra citar um, o Dr. Nilton, médico Chefe Perito, ele cumpria o horário, das 7h às 13:00, depois ia para a Santa Casa de Santos fazer cirurgia, “de graça”.
By: Jerônimo on Março 29, 2016
at 1:00 am