Publicado por: Evaldo Oliveira | Abril 24, 2020

UM RENAULT DAUPHINE É CAPAZ DE MUDAR UM DESTINO?

Durante o meu curso de Medicina, eu me deslocava para as aulas montado em uma Vespa. E assim aconteceu durante cinco anos. Foi desse modo que cheguei ao último ano do curso.

No sexto ano, vislumbrando um horizonte que se limitava com as divisas do Rio Grande do Norte, fui induzido a comprar meu primeiro carro. Uma belezura que me encantou à primeira vista.

Era um Dauphine branco, de quatro portas; acendia as luzes e buzinava. Os freios não eram confiáveis, mas funcionavam. Consegui usufruir dos benefícios do meu carro por um mês. A partir de então, começaram a surgir problemas que eu, até então, desconhecia.

Ora era o câmbio que não engatava marcha, o trambulador desconectava ou o motor falhava. De tal modo que raramente eu saía de casa e retornava sem que algo deixasse de funcionar. E minhas parcas economias foram escapando pelo ralo, digo, carburador.

Três meses. Basta. Resolvi negociar o carro. Fiz anúncio, colei cartaz, avisei aos conhecidos (amigos, nem pensar!). Ninguém apareceu. Certo dia, em uma volta pelo Alecrim, estacionei o carro, fingi trancar as quatro portas, que na verdade não funcionavam. Por segurança, estacionei em um local de declive, já prevendo um empurrãozinho na saída.

Na volta, um sujeito forte me esperava no carro, com o pé sobre o pneu dianteiro. Ao ver-me, o homem falou:

– Gostei do carrinho. Quer vender?

Fingindo desinteresse, perguntei quanto ele me oferecia pelo veículo.

– Bem, como sou matador de carro – até ali eu desconhecia essa profissão –, não posso lhe pagar além de duzentos (não lembro a moeda, mas sei que mal daria para comprar um par de sapatos).

Saí dali com cara de contrariado, controlando-me para não cair na gargalhada. E o carro pegou no tranco, ajudado pelo declive. O carro ficou parado, na rua.

Em uma manhã de sábado, aparece um comprador sério, vestido com roupas simples. O sujeito Chamava-se Faquir, pois podia tranquilamente esconder-se atrás de um poste sem que fosse visto. Fechamos o negócio. Imaginemos que o valor foi quinhentos, e ele apenas me pagou cem, ficando quatro prestações a serem quitadas no final de cada mês.

Jamais tive notícia de Faquir. Sumiu de Natal. Porém algo aconteceria. Durante meu estágio no CRUTAC (Centro Rural Universitário de Ação Comunitária), no último ano do curso, que aconteceu na cidade de Santa Cruz-RN, encontrei-me com Faquir feliz da vida. Veio em minha direção, e confesso que imaginei o pior. O encontro foi amigável, o rapaz estava feliz por ter conquistado o segundo lugar em uma gincana de carros que acontecera na cidade vizinha, dirigindo o seu Dauphine ainda branquinho. Por conhecer a ótima situação financeira dos jovens da outra cidade, imagino que o Dauphine era o único carro velho a participar. De quebra, usava o veículo em seu trabalho. Era um orgulhoso motorista de táxi.

O motivo da segunda colocação naquela gincana aconteceu por acaso. Chegando ao local, procurou saber se ainda podia inscrever-se. Podia. Foi informado de que  era obrigatória a companhia de uma partner. Nesse momento, uma moça fez um  sinal para participar, e ele aceitou. A última tarefa da gincana era parar, apanhar uma garrafa de Coca-Cola e a partner teria que ingerir seu conteúdo por inteiro. Quando Faquir chegou nesse posto, havia vários carros parados, esperando que as elegantes moças tomassem delicadamente o refrigerante. A moça ao lado de Faquir pegou a garrafa, entornou de uma só vez o conteúdo na boca e a devolveu vazia. Faquir disparou, chegando assim na segunda colocação.

Na despedida, desculpou-se por não ter honrado sua dívida comigo. Adiantei-me e dei o débito por quitado, ganhando mais um abraço de Faquir. Não perguntei se ele dividira o prêmio com a garota.

Dauphine, um carrinho com o condão de mudar a vida de um ser humano. No caso de Faquir, para melhor.

EvaldOOliveira

Sócio Correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do RN.

 

 

 


Respostas

  1. DELÍCIA DE CRÔNICA, EVALDO. IMAGINA A MINHA EMOÇÃO DE UM (FELIZ! ) EX-PROPRIETÁRIO DE DAUPHINE AMARRONZADO; TB ESTUDANTE DE MEDICINA E NO CRUTAC, AO LER SEU BELO TEXTO…

  2. Lembrei do meu fusquinha AA 7707, o primeiríssimo, em Jan/74. Nenhum proprietário de Ferrari se sentia mais satisfeito do que eu.
    PS: Ainda bem que fuscas não falam.

  3. Você sempre com suas belíssimas crônicas. Meu primeiro veículo foi uma bicicleta que comprei aos 21 anos. Depois troquei por uma Leonet. Moto com duas marchas. Em 1977 já em Natal, comprei meu primeiro carro um Gordine 4 portas e azul escuro. Diferente do seu, funcionava muito bem. Tive muita sorte nas compras dos meus carros velhos. Um grande abraço meu amigo. Saudades dos nossos encontros.

  4. Evaldo
    Excelente crônica, bem como os comentários dos teus amigos!


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