Dóris conhecia muito bem a asma do tio Adamastor, e sabia que era à noite que os sintomas se intensificavam, o que transformava sua hora de dormir um quase suplício.
Dóris morava em um lugarejo do interior do Maranhão, onde passava o Mearim, rio mais importante do estado, há cerca de quatro quilômetros de sua casa. Era nesse rio que as mulheres se reuniam para lavar a roupa da família.
Naquele dia Dóris saíra com algumas tias, primas e pessoas da vizinhança para lavar a roupa da casa, que era pouca. Pela madrugada ouvira o tio Adamastor com a respiração mais forte, produzindo um chiado mais intenso, com tosse seca e respiração forçada. Pelo caminho, pensava no sofrimento do tio.
Ao passar em frente à casa onde morava, uma pessoa veio à porta avisar que seu tio queria falar com ela. Encontrou-o respirando com dificuldade, sentado junto ao espelho da cama, com uma almofada servindo de apoio para as costas.
– Dóris, quero lhe pedir um favor. Quero que lave essa minha roupa -, falou com grande escorço.
Pela primeira vez lhe pedia algo em especial. E era uma roupa que o tio vestia em dias de festa.
– Outra coisa – continuou. Saiba que estarei sempre ao seu lado para protegê-la, esteja onde você estiver. Só lhe peço que me avise toda vez que mudar de lugar. Não se esqueça disso.
Na beira do rio, em meio ao converseiro das mulheres, começou a soprar um vento frio. Vento frio em setembro? – pensou. O vento aumentou, formando um pequeno redemoinho, que girava carregando as folhas secas. A manhã estava cinzenta, e o vento serenou em seguida. Uma sensação estranha correu pelo seu corpo. Logo, um garotinho surgiu gritando o seu nome – Dóris! Dóris! O tio Adamastor morreu -, pensou consigo. E saiu em disparada para a casa .
A vida de Dóris mudou completamente. Sem a ajuda e a proteção do tio, ela foi mandada pela família para a casa de um tio que morava em uma cidade distante.
O tio era muito exigente, e logo Dóris estava cuidando de todos os serviços da casa. Sua vida se resumia a trabalhar, trabalhar e trabalhar. Percebendo a triste situação da sobrinha, uma tia querida providenciou sua ida o Gama, uma cidade satélite do Distrito Federal. Outra reviravolta em sua vida. Finalmente, voltara a estudar e logo concluiria o segundo grau. Foi nessa época que conheceu Abadio, um goiano trabalhador e apaixonado.
E os anos se passaram, a vida fluindo sem grandes sobressaltos. Naquela tarde de sábado, um vento solto e forte assobiava nos pés de pequi que Dóris avistava da cozinha. Chegou a esboçar um riso, percebendo o vai e vem das folhas.
À noite, Abadio entra no quarto com o rosto pálido, suado, e as pernas trêmulas. Quase resfolegando, afirmava ter ouvido nitidamente o chiado de alguém, ou o gemido de algum animal. Atônito e confuso, olhou para Dóris e falou:
– Tem alguma coisa esquisita lá na garagem. Parece um animal ferido ou alguém com asma! Olhei em volta do fusca e não percebi nada de anormal. O portão está trancado.
Dóris sabia que seu marido sempre fora corajoso e destemido, e trataram de se preparar para dormir. Mais tarde, em meio às suas orações, sentada na rede, Dóris percebeu o peso de alguém sentando ao seu lado. Imaginou ser Abadio em busca de uma companhia para esperar o sono chegar. Ali, Dóris sentiria o mesmo frio daquela manhã, à beira do Mearim, correr-lhe pelo corpo. E uma voz cortou o silêncio do quarto:
– Minha filha, por que você não me avisou onde estava? Passei todo esse tempo lhe procurando. – Era uma voz limpa, sem chiado, como jamais ouvira o tio falar. Ela sabia de quem era aquela voz. Porém havia uma dúvida: aquelas palavras estavam sendo pronunciadas, ou apenas entendidas em sua mente, sem serem faladas, mas ouvidas? Dóris virou-se para Abadio, que continuava dormindo na cama tranquilamente
Um tio amoroso. Uma alma atribulada, em busca de paz.
–
EvaldOOliveira
Sócio Correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do RN
Deixe uma Resposta