Rivonaldo tinha um verdadeiro fascínio pelos temas que envolvem a morte. Havia lido que logo depois da morte o espírito se encontraria em estado de perturbação, sem compreender que aquele corpo não mais lhe pertence. Chegava a rir dessas estórias. “Morto não fala nem se mexe”, – não se cansava de repetir.
Rivonaldo estava em processo de treinamento para assumir as funções de maqueiro no hospital da cidade e precisava demonstrar coragem, ser valente. Na primeira semana, todo o seu trabalho foi acompanhar Ortanato, o velho maqueiro em processo de aposentadoria. E o amigo, matreiro, dizia em tom de brincadeira para Rivonaldo:
– Cuidado, rapaz! Você pode ser atormentado pela alma dos mortos que não forem tratados com respeito.
Naquele dia, o primeiro sem a companhia de Ortanato, o jovem maqueiro faria tudo ao seu alcance para não desmerecer a confiança do amigo, que o havia indicado para a função. Queria ser um substituto à altura. E pensou com seus botões, agora adornando uma bata branca: “Medo de cadáver, logo eu?!
Mal acabara de bater o ponto, o maqueiro já estava sendo convocado para transportar um cadáver, que tinha o corpo coberto por um lençol. Rivonaldo saiu da enfermaria cheio de garbo, conduzindo o cadáver de um homem, cumprindo em silêncio o seu primeiro trabalho solo naquele hospital. Caminhou pelos corredores, deu uma volta por trás da capela e se dirigiu ao necrotério, que ficava nos fundos do hospital, ao tempo em que se distraía com o ruído produzido pelas rodas da velha maca.
Na frieza do necrotério, abriu a geladeira de três gavetas e acomodou o cadáver na gaveta do meio, com todo o cuidado. Minutos depois, dirigiu-se à UTI para apanhar outro cadáver, seguindo de volta pelo mesmo caminho, a mesma concentração no rangido das rodas do carrinho.
Alguns pacientes olhavam o triste cortejo do fundo de seus aposentos. De volta ao necrotério, Rivonaldo abriu a geladeira e escolheu a primeira gaveta, que ficava junto ao piso. Quando estava terminando de colocar o corpo no refrigerador, ouviu um forte grito bem próximo ao seu ouvido, e percebeu que o morto da gaveta do meio tentava rasgar o lençol que lhe cobria o corpo. Tinha uma cor azulada em torno da boca e dos olhos, e se movimentava de forma desesperada.
Nesse momento, uma paciente precisava ser levada com urgência à UTI, e Rivonaldo foi convocado pelo serviço de alto falante. Passados alguns minutos, um servidor da limpeza foi destacado para procurar o novo maqueiro. Ao chegar ao necrotério, o rapaz se deparou com um quadro terrível: um homem pálido, apavorado, aos urros, tentando desesperadamente se livrar das amarras do lençol e sair da geladeira. No chão, envolto em um mar de fezes, vômito e urina, estava o valente Rivonaldo, de olhos esbugalhados, inerte, sem voz, apontando para a gaveta do meio.
Hoje, o quase cadáver trabalha em um posto de gasolina, em Natal, que fica a duas ruas do hospital.
Rivonaldo jamais apareceu por lá.
–
EvaldOOliveira
Sócio Correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do RN.
Texto já publicado neste blog, com outra formatação
Meio Stephen King
By: Prof. Carlos Alberto on Fevereiro 19, 2022
at 12:01 pm