Salvador, 2004. Ruiz – nome fictício – era um rapaz bonito, de barba franca, dois dias por fazer, vestido à maneira convencional para os de sua idade. Foi trazido à consulta sob a alegação de loucura. Vivia em um mundo só seu. Esquizofrenia. A mãe e a irmã foram ao psiquiatra na véspera da consulta e relataram seus temores. O rapaz estava fora de si, e se constituía em perigo para a família e para as pessoas de sua relação.
Ficaram sozinhos no consultório, o paciente e o psiquiatra. Ruiz, em sua verborragia ansiosa, expressava-se com palavras desamordaçadas, fortes, entrecortadas, aqui e ali, por risos desapegados do compromisso com o ridículo. A certa altura, Ruiz falou:
– Doutor, as pessoas dizem que sou esquizofrênico só porque eu quero viver o meu sonho. Isso é loucura?
O médico olhou-o com enlevo, ele também em busca de algumas respostas.
Terra de seus pais, ele há dois meses na cidade. Grupinhos de adolescentes reuniam-se aqui e ali, risos no tom do exagero. Junto a um frondoso pé de ficus benjamina, alguns jovens formavam um grupinho pequeno, isolado; seis pessoas a cochichar na sombra-semi-escuridão daquela noite enluarada de julho. Último dia de férias. Retorno.
Ela chegou. Ele fez que não a viu, suspirou e continuou de cabeça baixa, mirando o nada. Ao longe, um grupinho de crianças iniciou uma cantiga de roda que revolvia o seu ser, entrecortada por um silêncio fugidio. No meio do silêncio, o cricrilar de um grilo tinha o condão de uma campainha. E a melodia de cadência antiga espalhava-se feito pluma naquela noite prenha de luar.
Se essa rua, se essa rua fosse minha
Eu mandava, eu mandava ladrilhar
Com pedrinhas, com pedrinhas de brilhante
Só pra ver, só pra ver meu bem passar.
E ela sussurrou fundo em seu ouvido, com segredo de besouro enroscado, encobrindo a voz das crianças, finalizando a canção:
Nessa rua, nessa rua tem um bosque
Que se chama, que se chama solidão
Dentro dele, dentro dele mora um anjo
Que roubou, que roubou meu coração.
Ele, com sua timidez adolescente, abaixou a cabeça mais um pouco, contemplou o brilho da lua refletindo no calçamento e fechou os olhos. Sobre si, a sombra da árvore; mais acima, uma lua em branco-gelo cesareava a escuridão. Quando retornou a esta dimensão, estava sozinho. Não percebera que os amigos se foram. Ela, também.
Até hoje o psiquiatra tenta resgatar os fragmentos do seu sonho, e aquela cantiga a persegui-lo vida afora, sem uma resposta, que sabe distante.
E Ruiz à sua frente, tentando justificar suas ansiedades, seus medos, seus momentos de solidão, seu sonho inatingível.
Ambos em busca de uma ilusão enroscada nas teias de um sonho.
–
EvaldOOliveira
Sócio Correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do RN
Contos da Salinésia. Esse poderia ser o título da sua série de recordações no blog Era uma vez em Areia Branca.
By: Prof. Carlos Alberto on Julho 23, 2022
at 1:15 pm