Fui destacado para ir ao Mercado Público comprar umas tapiocas para o café. Criança de seis anos, coloquei os mil réis no bolso da calça, ajeitei o suspensório que teimava em cair do ombro e saí aos saltos, feito cabrito em busca de oró. Passando pelo oitão da prefeitura, vislumbrei, ao longe, algumas panelas de alumínio, pesadas e grosseiras, umas grelhas, frutas e utensílios espalhados pelo chão. Tudo para vender, claro.
Em um canto da rua, um aglomerado de pessoas formando um círculo, e no centro um homem falava em um microfone rudimentar pendurado no pescoço, a saliva se espalhando em borrifadas de tufão. Era um homem magro, que gritava, gesticulava. De repente parou, pôs a mão no pescoço de uma velhinha com rosto de sofrimento, língua saburrosa, branca feito barriga de lesma, que se escondia solitária em uma boca desdentada, que assistia ao espetáculo, e berrou:
– Esta é a Rádio Papa-Figo Pé de Calçada, operando em ondas curtas, médias e esticadas de um poste para o outro, transmitindo com quinhentos e cinquenta quilos de lixo na antena!
O sujeito rodopiou, voltou a mão para o pescoço da senhora e bradou:
– Vocês estão vendo essa desgraça de gente? Magra, desnutrida, com cara de bruxa, feia que só a peste? Mas eu lhes garanto: se ela tomar ao menos três vidros deste remédio, vai ficar bonita, rosada, forte, com cara de gente, como aquela moça bonita.
Em seguida, deu um giro acrobático, fixou o olhar em mim e falou decisivo:
– Vem cá, menino. Eta, menino bonito! Fofura, fique segurando esse saquinho – e fez questão de mostrar a todos que o pano de coar café estava vazio – que daqui a pouco vai aparecer um ovo aqui dentro. Segure o saco assim, de frente ao corpo, com os braços levantados, porque hoje é dia da onça beber água! Prestem atenção, senhoras e senhores, à mágica que vou fazer: esse menino vai botar um ovo que vai aparecer no saco que ele tem nas mãos! Vocês nunca viram nada igual. Este número de magia foi-me ensinado por uns magos de Estambul, quando de uma fuga pela Turquia, na época em que eu andava em busca da fórmula do Elixir da Longa Vida.
Sassaricou, fez um caqueado e arrematou:
– Vocês devem estar pensando que eu estou inventando, e que nem sei falar turco. Pois bem, vou ensinar algumas expressões usadas no dia a dia de uma cidade turca. Prestem atenção à pronúncia tipicamente turca desta conversa entre um homem e uma mulher:
– O homem disse: giunaidãn = bom dia! Nassãl-sanãz = Como está?
– A mulher respondeu (e usava timbre feminino ao falar, hoje utilizado por Amó): teshekkiu = Estou bem, obrigada.
– (e voltou a falar grosso novamente) Memmnum oldern = Prazer em conhecê-la.
– Novamente falando fino: Efedin? = Como?
– O homem falou: Memmum oldern = Prazer em conhecê-la.
– Mais uma vez imitando uma mulher: Ah shimdi anladãm = Ah, agora entendi.
– Ouviram? Se tiver alguém aqui que fale turco, poderemos continuar o papo o resto do dia. E podem conferir com qualquer pessoa que conheça esse belo idioma. Aprendi tudo isso em Estambul, o paraíso dos odores e dos temperos.
Descobri, logo de saída, quão mentiroso era o sujeito. Claro que aquelas expressões eram turcas. O restante foi mentira do começo ao fim. Mas confesso que fiquei preocupado, e mentalmente dei uma revisada em minhas entranhas, e desejei que o ovo fosse, ao menos, de pombo ou de codorna. De galinha, nem pensar.
E, ali mesmo, fiquei imóvel, feito estátua viva, segurando aquele saco branquinho na frente do corpo, preocupado com o que dissera aquele homem. Eu iria botar um ovo? Será que eu ouvira direito? Face aos acontecimentos, esqueci-me completamente do que fora fazer no mercado naquela manhã. As pessoas, demonstrando uma pressa ansiosa, contavam as moedas para comprar o remédio, que era apregoado como sendo um segredo dos índios do Xingu. E eu continuava de pé, sustentando o saco em frente ao corpo.
Depois de uma hora e meia, e a maior parte dos produtos vendida, as pessoas saíram. Apenas umas três ou quatro pessoas teimavam em esperar a conclusão da mágica, com o surgimento de um ovo dentro do saco de coar café. O vendedor de ilusões dirigiu-se a mim, pegou o saco, guardou na mala, cumprimentou as pessoas com a cabeça e se retirou sem fazer alarde, quase levitando.
Em casa, sem as tapiocas, não tive minhas justificativas aceitas pela corte marcial e, para completar o dia, ainda levei um puxão de orelha, pra deixar de ser brocoió e beradeiro.
Hoje, tenho uma quase certeza: aquela velhinha era a mãe dele.
–
EvaldOOliveira
Sócio Correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do RN
Texto já publicado neste blog
Essa vai para o arquivo do menino que ouvia elétrons.
By: Prof. Carlos Alberto on Março 5, 2023
at 1:33 pm
Evaldo, sensacional esta tua crônica também, conterrâneo!
By: Sônia Ribeiro on Março 5, 2023
at 8:07 pm